Categoria: Matérias

  • O que o Brasil deve demandar da China?

    O que o Brasil deve demandar da China?

    2025 é o ano em que Elias Jabbour voltou para o Brasil, e voltou a poder falar de política economia. Com isso, a provocação dele de que o Brasil é muito pouco estratégico na construção de acordos com a China volta a circular, e esta publicação tenta explorar algumas possibilidades.

    A lógica da “cooperação ganha-ganha”

    A China repete constantemente o jargão “cooperação ganha-ganha” para explicar suas relações com outros países, mas a verdade é que pouca gente realmente compreende a lógica dessa cooperação. Ilustremos com um exemplo. A China investe em fábricas de processamento de cacau e armazéns na Gana e Costa do Marfim. Com isso, esses países adensam a cadeia produtiva e incorporam essa etapa na sua economia, gerando empregos e desenvolvimento. Em troca, ela recebe contratos de longo prazo de compra de cacau processado, permitindo a criação uma indústria de chocolate na China, que importa a maioria do chocolate que consome, resultando no mesmo ganho de emprego e desenvolvimento na China. As multinacionais ocidentais fabricantes de chocolate, claro, não gostam nem um pouco de perder a possibilidade de explorar o mercado chinês, nem de ter que comprar cacau processado, em vez de in natura.

    A lógica da cooperação ganha-ganha é essa: viabilizar negócios nos países do sul global em termos melhores do que os atuais na divisão internacional do trabalho. Sem entender essa lógica, é impossível elaborar demandas coerentes para a China.

    Substituição de importações vs. substituição de exportações

    Hoje, as demandas do Brasil à China giram em torno da substituição de importações, ou seja, produzir no Brasil produtos importados da China, como podemos ver pelo investimento na construção das fábricas da BYD e Great Wall Mortors. Essa estratégia se aproveita do grande mercado consumidor do Brasil e da possibilidade do país exportar essa produção para alguns países, o que chamamos de o país se tornar “plataforma de exportação”. Porém, o que foi descrito na parte anterior é outra estratégia, a substituição de exportações. O exemplo da indústria automotiva no Brasil, baseado na substituição de importações via presença de multinacionais, mostra os limites dessa estratégia: se concentra na etapa final do processo produtivo, mantendo a dependência tecnológica de insumos importados e de multinacionais. Em alguns casos, esse processo dá certo e o país se torna plataforma de exportação para as multinacionais, gerando uma substituição de exportações, mas isto é raro, uma vez que seu objetivo principal não é competir no mercado internacional, mas atender o mercado doméstico. A tática padrão dessa estratégia é a proteção do mercado contra importações.

    A substituição de exportações, por outro lado, busca agregar valor a uma cadeia produtiva, como no exemplo do processamento de cacau. O seu objetivo é nacionalizar uma etapa da cadeia de valor, competindo no mercado global. Exatamente por isso, tende a dar mais certo quando um país deseja exportar esta etapa, em busca de melhores termos de troca ou outras vantagens. Enquanto a substituição de importações foca em produtos cobiçados, de alto valor agregado, cujas empresas mantém grande controle sobre propriedade intelectual, a substituição de exportações foca em produtos com um pouco mais de valor do que o que já é produzido e, portanto, não tão cobiçados e protegidos. A tática padrão é o contrato de fornecimento de longo prazo.

    Talvez esteja pensando agora que a industrialização da China foi baseada na substituição de exportações, enquanto as tentativas do Brasil na de importações. E talvez isto explique o sucesso chinês e o fracasso brasileiro. O que a China vem oferecendo aos países sob o nome de cooperação ganha-ganha é exatamente a sua experiência de substituição de exportações, à medida que seu nível de renda e custo do trabalho aumentam.

    Oportunidades nas cadeias de valor

    Seguindo essa lógica, a estratégia básica para o Brasil deveria ser de substituição de exportações para a China, com investimento chinês, se aproveitando de produtos que o Brasil pode fornecer e de indústrias que a China possa querer exportar.

    De acordo com essas premissas, não é inteligente para o Brasil querer investimento chinês para produzir carros elétricos. Seria mais interessante receber investimento para minerar e processar lítio, talvez até montar as baterias, produzir borracha e pneus, fazer bancos de couro…

    Observando as exportações do Brasil para a China, soja em grão, minério de ferro, petróleo cru e carne de gado congelada representam 80% da nossa pauta de exportações. Todos produtos primários, o que indica que o Brasil ainda tem muito espaço para substituir exportações. Porém, contra intuitivamente, o ideal não é simplesmente tentar capitalizar nestes produtos e tentar produzir ligas metálicas, ração ou derivados de petróleo. O Brasil é um país com custos de produção muito parecidos com os da China, e não há grande benefício em exportar indústrias para cá. Porém, o Brasil pode apoiar o processo de substituição de importações chinês, como no exemplo do Chocolate.

    A China não tinha grandes fábricas de processamento de cacau a exportar, mas a Suíça e a Bélgica tem. Esses países não vendem cacau processado, mas chocolate. A China está substituindo a importação desse chocolate e precisava de fornecedores de cacau. A melhor forma de garantir fornecimento a preço estável é trocar o investimento por exclusividade de compra.

    Uma forma inteligente de aproveitar a guerra comercial entre China e EUA é analisar a pauta de exportações dos EUA para a China procurando produtos manufaturados e semimanufaturados que o Brasil possa produzir e produtos de alto valor agregado para os quais o Brasil possa fornecer insumos se a China nacionalizar a etapa final. Essas são oportunidades para as quais o Brasil deve demandar investimentos chineses.

    Produtos exclusivos do Brasil

    Outra janela de oportunidade são os produtos que apenas o Brasil pode fornecer, como os produtos das cooperativas agroextrativistas da Amazônia (castanha-do-pará, açaí, etc.). Seria relativamente fácil criar um mercado na China para produtos agroindustriais ecológicos do Brasil, e com isso fortalecer as cadeias de valor agroecológicas nacionais, que hoje são muito mais frágeis que as atividades do gado e soja que estão destruindo a amazônia. A questão central da substituição de importações ou de exportações é: “Qual o mercado consumidor relevante?”. A substituição de importações gira em torno do mercado brasileiro, enquanto a substituição de exportações gira em torno do mercado chinês. Focar em produtos para os quais o Brasil não tem concorrentes, como polpa de açaí ecológica, se aproveita do tamanho do mercado consumidor chinês para impulsionar um processo de desenvolvimento econômico em harmonia com a floresta no Brasil.

    Conclusão

    Acredito que as melhores oportunidades para o Brasil quanto a receber investimento chinês não estão nas altas tecnologias, na fabricação de painéis solares, trens ou carros elétricos. Estes produtos se encaixam em uma estratégia de substituição de importações que não supera a condição dependente do país, apenas muda a dependência de lugar. Nosso foco na substituição de importações nos impede de alcançar um grau maior de autonomia a partir da substituição de exportações. Nessa estratégia, o acesso ao mercado chinês é um fator essencial para fortalecer a industrialização nacional. Existe um campo enorme de oportunidades, integrando o Brasil às cadeias de valor chinesas e outro criando mercados para produtos tropicais que apenas o Brasil pode fornecer. O modo como esses acordos são feitos pode inclusive potencializar modos de produção cooperativos que preservam o meio ambiente, caso feitos com o devido cuidado.

    Porém, como Elias repete constantemente, falta pensamento estratégico no Brasil para vislumbrar essas oportunidades e perseguir esses acordos.

    Reações no Fediverso
  • O que mudou em 2013?

    Eu gosto de dizer que, sem 2013 não haveria 2016 e a estratégia petista de conciliação com o PMDB e outros partidos do Arenão, teria mais vários anos de sobrevida. Mas isso tem pouco a ver com as revoltas serem uma “revolução colorida” engendrada pela CIA ou uma armadilha da extrema-direita. Tem mais a ver com 2013 ser um terremoto, que mudou de lugar as placas tectônicas sobre as quais se assenta a política nacional.

    Nuvens e placas tectônicas

    Tancredo Neves dizia que a política é como as nuvens, cada vez que você olha vê algo diferente, para explicar a política de alianças móveis das oligarquias fisiocráticas das quais ele próprio fazia parte, que em vez de firmes posições ideológicas, mudava de lado para ser estar sempre perto do governo.

    Mesmo ele estando certo, há outro movimento, mais profundo na política, cuja melhor metáfora são as placas tectônicas, que explica, por exemplo, a segunda eleição de Lula. Se o movimento dos agentes políticos são as nuvens, a movimentação do consenso popular são as placas tectônicas, que ocorre aos poucos e de modo imperceptível. Os analistas podem ver o resultado do movimento, mas não o movimento em si. André Singer defende que o Lulismo surgiu durante o primeiro mandato de Lula, e se através de uma mudança da sua base de apoio rumo à população mais pobre e se afastando das classes médias, que apoiavam o PT por conta de posições como o combate à corrupção e se desiludiu com as denúncias do “mensalão”. Isso seria um exemplo de movimento das placas tectônicas. Nesse sentido que 2013 é um terremoto. É uma mudança profunda do consenso popular, mas que ocorre em uma explosão, em vez de gradual e imperceptivelmente.

    Mas o que mudou?

    Essa é a grande questão, no fim das contas. O que mudou em 2013? A minha hipótese, um pouco abstrata é: o critério de avaliação da realidade. Em 2013 o eleitor médio passou a dar mais importância aos critérios morais que aos critérios econômicos para avaliar a realidade e, naturalmente, mudando os critérios, mudam os resultados.

    Argumentos

    Este gráfico, extraído da pesquisa CNT/MDA permite explicar bem o argumento. A mudança brusca de junho para julho de 2013 é a pista mais importante. As jornadas de julho calharam de acontecer um mês depois da pesquisa anterior, em uma época em que não ocorreu nenhuma grande mudança na vida econômica do país. Comparando a percepção econômica das duas, as respostas são muito parecidas. A única grande mudança foram as jornadas e, felizmente, a pesquisa pergunta sobre a percepção delas. A maioria acreditava que a reivindicação mais importante era o fim da corrupção (40%) e que o motivo delas era a insatisfação com a corrupção (55%). Não importa que tenha começado com uma pauta de transporte coletivo. O que se entendeu foi a pauta moralista da corrupção.

    Alias, a maioria tinha uma avaliação mais positiva da reação de Dilma diante das manifestações que do congresso e 67,9% gostou da proposta que ela fez de um plebiscito sobre a reforma política, o que nos coloca diante da situação curiosa do eleitor que odeia os deputados que elege reiteradamente, mas divago…

    Singer aponta que a classe média se afastou de Lula com o Mensalão porque um dos motivos do seu apoio ao PT era ver o partido como um partido anticorrupção. Ao mesmo tempo, as políticas sociais do primeiro governo Lula conseguiram conquistar o apoio de uma população mais pobre, que percebeu mudanças econômicas na sua vida. Essa mudança da base de apoio explicaria a reeleição de Lula e ele sobreviver às denúncias. Seu apoio não diminuiu, mas mudou de composição.

    Ao longo dos anos, a insatisfação com a corrupção adormeceu, podemos supor que devido ao sucesso econômico das administrações petistas, mas explodiu em 2013. Podemos, inclusive, supor que pela mudança de perfil da população, que tendo escapado da pobreza, passou a dar valor a outras coisas.

    Mas vamos à mudança mais brusca, entre setembro de 2014 e março de 2015. Entre estas duas datas, houve a eleição em outubro em que Dilma foi reeleita com 51,6% dos votos, então podemos supor que essa mudança brusca de opinião ocorreu entre 26 de outubro e 16 de março, data da pesquisa. Na verdade, outras pesquisas, que não são estatisticamente comparáveis, concordam com os dados da CNT/MDA quanto aos dados gerais e apontam que a avaliação de Dilma caiu meteoricamente assim que assumiu o segundo mandato.

    Muita gente da esquerda defende a hipótese do “estelionato eleitoral”, de que essa queda de popularidade se deveu ao fato de Dilma adotar políticas como restrição de pensões, diminuição do abono salarial e outras políticas de austeridade fiscal, o que alienou sua base eleitoral sem conquistar os setores que exigiam essas medidas (o mercado e a mídia). Não discordo que essas medias tenham um peso, mas não acredito que sejam o principal fator.

    50,6% das pessoas achavam que a corrupção era o maior desafio do governo na pesquisa de março de 2015 da CNT/MDA, e apenas 29,3% que era a economia, apesar de a maioria achar que a economia ia mal e ia piorar. Isso porque para 63,9% dos pesquisados a corrupção era causa dos problemas econômicos e a melhor solução para a crise econômica era promover a reforma política para 43,8%. Podemos deduzir que as pessoas sabiam que o país estava em uma crise, que o ajuste seria feito nos mais pobres, mas identificavam a corrupção como o causa central e a reforma política como saída.

    Nessa época a Lava-Jato fazia operações espetaculares regularmente, com uma cobertura midiática que colocava toda a culpa no PT. Na página 86 da pesquisa Datafolha de fevereiro de 2015 é possível ver como a corrupção sai do 8º lugar como principal problema do Brasil no início do primeiro mandato de Dilma para 2º lugar no início do segundo. É interessante perceber que durante o “Mensalão” a corrupção nunca conseguiu essa importância, porque o maior problema era o desemprego. A medida que o desemprego vai perdendo importância, a saúde se impõe como maior problema ao longo do segundo mandato de Lula e do primeiro de Dilma. Todos fatores ligados diretamente à vida material das pessoas. Porém, com a Lava-Jato ocorre algo diferente, cuja gênese está em julho de 2013: a corrupção passa a ser vista como um problema cada vez mais grave.

    Conclusão

    A minha hipótese de trabalho é que a experiência da classe média ir às ruas em 2013 provocou uma mudança profunda na sociedade, que passou a dar mais valor para a avaliação moral, ou moralista, se preferir, e menos para a avaliação econômica. É importante lembrar que o moralismo é um elemento importante para a construção do fascismo, e que discriminações como o racismo, machismo e LGBTQIAfobia também se baseiam em discursos morais. Nesse novo cenário, a esquerda manteve um discurso econômico, enquanto o bolsonarismo fez campanhas essencialmente morais. Enquanto a esquerda debate as vantagens que o eleitor receberá, a direita debate porque o seu eleitor é melhor. E, como podemos ver pelos resultados eleitorais, a abordagem moralista continua sendo eficaz.

  • O Capitalismo é Mau

    Frederich Engels criou o termo “assassinato social” para descrever as mortes causadas por condições econômicas e sociais que poderiam ser facilmente evitadas, mas não são. Gosto mais da expressão do que de “necropolítica”, porque deixa claro que há um ator, um responsável. Assassinatos possuem culpados. E, com certeza, esse post existe por causa do assassinato do CEO de plano de saúde nos EUA.

    “Quando um indivíduo ocasiona danos físicos a outro, resultando em morte, chamamos o ato de homicídio culposo; quando o agressor sabe de antemão que o ferimento será fatal, chamamos de assassinato. Mas quando a sociedade coloca centenas de proletários em tal posição de modo que eles inevitavelmente se deparem com uma morte muito precoce e não natural, uma morte que é tão violenta quanto aquela ocasionada por uma espada ou bala; quando priva milhares do essencial para a vida, coloca-os em condições em que não podem viver — obriga-os, através do forte poder da lei, a permanecer em tais condições até que a morte vença, feito consequência inevitável — ou seja, quando ela sabe que esses milhares de vítimas vão perecer e, ainda assim, permite que permaneçam nessas condições, então sua intenção é a de assassinar, assim como quando um indivíduo sozinho comete assassinato; mas torna-se um homicídio disfarçado, malicioso, um homicídio contra o qual ninguém se pode defender, que não parece o que é, porque ninguém vê o assassino, porque a morte da vítima parece natural, pois o crime é mais por omissão do que por cometimento. Mas não deixa de ser assassinato”. — Friedrich Engels, “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”

    Uma das críticas mais comuns às revoluções socialistas é o moralismo pacifista. “Como os bolcheviques puderam assassinar a família dos Czares. Mulheres e crianças!”. Esse tipo de crítica comove apenas pela distância, como podemos ver pela falta de empatia pelo CEO. Assim como o plano de saúde é responsável por inúmeras mortes ao negar tratamentos, a família do Czar era responsável por inúmeras mortes em uma guerra que nem fazia sentido para o povo russo. Mas esse moralismo não sobrevive a dois minutos de observação da realidade do assassinato social que ocorre todos os dias.

    Porém, se o povo consegue identificar claramente que essas pessoas são assassinas, como elas mesmas conseguem continuar executando suas tarefas em uma máquina assassina de condenar pessoas à morte? Como é possível que uma série de executivos, analistas e consultores continuem executando tarefas cuja consequência é a morte?

    Esse problema chocou o mundo quando os campos de extermínio foram descobertos na Segunda Guerra. Algumas das melhores explicações são as de Adorno, que falam sobre a existência de uma “razão instrumental” que é capaz de elaborar complexos mecanismos de terror, mas incapaz de refletir sobre as consequências éticas das suas ações, e Arendt, que falam sobre um mal banal, que é executado por pessoas que não pensam sobre o que fazem.

    O choque europeu com o nazismo espantou muito Aimé Césaire. Nascido em uma colônia europeia, foi cirúrgico ao falar que a única novidade do nazismo foi aplicar na metrópole, o que as metrópoles praticavam nas colônias. A indignação ocidental com a violência contra os seus tem ares de hipocrisia, porque das cruzadas ao genocídio palestino em curso, o que os seus fazem é potencializar o mal com toda a razão instrumental disponível e o aplicar do modo mais banal possível.

    O que espanta no texto de Engels, muito anterior a toda essa discussão, é como ele é capaz de perceber que o capitalismo não usa sua razão apenas para matar por ação, mas também pela omissão. Que o capitalismo usa de sua razão instrumental para criar, com a maior banalidade, condições que resultam na miséria e morte. Reformas trabalhistas, corte de aposentadorias, falta de manutenção em barragens de mineração, privatização da saúde, grilagem de terras, especulação imobiliária, evasão fiscal, desemprego… São todas condições que fabricam a morte dos trabalhadores, mas de um modo mais indireto que os policiais atirando em crianças de quatro anos da periferia ou atirando pessoas de pontes. A lógica capitalista, de aumentar os lucros e reduzir os custos, é a própria razão instrumental, que vai ceifando vidas em nome de pagar cada vez menos e cobrar cada vez mais, aplicada sem a menor reflexão ética sobre as suas consequências.

    A falta de consciência, a banalidade do mal, não é desculpa. Como diz Samir Machado de Machado, o único bom nazista é o nazista morto. Mas seguir essa lógica cristalina nos obriga a defender que o único CEO bom é o CEO morto. O único colonizador bom é o colonizador morto. O único grileiro bom é o grileiro morto. É essa lógica cristalina que explica o assassinato do Czar e de todos que poderiam herdar o título. Essa é a lógica dos comunistas que escandaliza quem fecha os olhos ao assassinato social de milhões de pessoas para se indignar com a revolta dos oprimidos.

  • Como o neoliberalismo matou a democracia

    É lugar comum se debruçar sobre os motivos que levaram a democracia burguesa ao impasse em que se encontra hoje e as possíveis explicações elencadas são as mais diversas. Como o fenômeno complexo que é, que se manifesta em cada país de modo ligeiramente diferente, é difícil sustentar um motivo central, como o título deste ensaio sugere, mas este é o desafio que buscamos confrontar, defendendo a centralidade do neoliberalismo, este conjunto complexo de política, economia e ideologia, nesta transformação. Além da centralidade, disputamos o marco temporal. A democracia não “está ameaçada”, ela já morreu, afinal:

    Em última instância, democracia é ter um estado que atenda os interesses do povo

    Os comentaristas políticos já usaram a expressão “crise de representatividade” à exaustão, mas são incapazes de explicar o que ela é e qual sua origem, porque isto deixaria o rei nu. As instituições de poder da democracia tem tido seu poder reduzido nas últimas década para garantir um objetivo central: a supremacia do capital financeiro, ou do “mercado”, como a mídia chama. Para garantir que os interesses dos capitalistas financeiros, que operam nas bolsas e ganham, dinheiro com o rentismo não sejam confrontados o neoliberalismo é, politicamente, um sistema que coloca para fora do debate democrático a discussão sobre o sistema econômico. Há vários exemplos na história recente do Brasil do mercado chantagear o governo para garantir seus interesses, mas focando no mais emblemático, a independência do Banco Central é uma mensagem que diz claramente “a macroeconomia não é matéria de discussão democrática”.

    Atender os interesses dessa pequena elite de super-ricos do mercado financeiro faz com que sejam eles que controlem elementos chave da economia brasileira: qual a taxa de juros, qual a estrutura tributária, quanto dinheiro o governo tem para implementar políticas públicas e fazer investimentos. Apenas esses super-ricos vivem em uma democracia, em que eles tem status de povo e o direito de ter seus interesses atendidos pelo governo. O resto, a quase totalidade do mundo, vive em uma cidadania de segunda classe, numa semi-democracia.

    “TINA” reduz o limite do possível

    A pedra fulcral do neoliberalismo enquanto agenda política se apresenta no slogan de Margareth Tatcher: “TINA, There is no alternative”, ou “não há alternativa”, porém essa também é a pedra tumular da política, porque se não há alternativa, a política se resume a pequenos ajustes em um destino que não está mais aberto à discussão.

    A operação discursiva desse slogan é apresentar uma afirmação ideológica, de que a economia liberal controlada pelos mercados financeiros é o a única alternativa para a sociedade, como uma verdade científica indiscutível e auto evidente. Ao mascarar uma opção política como verdade científica, a partir do discurso de economistas, o neoliberalismo justifica sua exclusão da política, uma vez que as verdades científicas, como a lei da gravidade ou a teoria da evolução não estão, ou não deveriam estar, abertas a discordâncias políticas.

    A consequência deste slogan ter sido aceito como verdade no neoliberalismo é a redução dos limites do que é percebido como possível. Mesmo diante de exemplos que provam a falsidade do slogan, como a elevação do padrão de vida na China, os ideólogos continuam afirmando que é impossível qualquer coisa além de pequenas melhorias incrementais da situação atual, porque senão os chantagistas do mercado, que são eles mesmos, vão implodir o país. Uma ferramenta argumentativa usada à exaustão é afirmar que o sucesso econômico da China se deve ao autoritarismo, e não a não seguir as políticas neoliberais.

    A despersonalização do mercado recria a aristocracia

    Então chegamos ao último elemento da operação ideológica: como esses chantagistas são convertidos em forças impessoais da economia, e não em pessoas com nome, endereço e interesses, eles nunca são responsabilizados, moral ou politicamente, por suas ações. A opção de condenar milhões à miséria para ganhar mais milhões que não precisa nunca é individualizada e condenada, mas sempre um movimento de forças impessoais.

    Existir uma categoria de pessoas acima da responsabilidade política é uma das características do antigo regime, da monarquia. Algo incompatível com a democracia. Mas o que podemos ver no jornalismo econômico, ou nas pesquisas de opinião apenas entre os operadores do mercado é exatamente a despersonalização, a aceitação automática de tudo que estes atores fazem como correto e válido.

    O “mercado” é uma elite que paira acima da democracia, que não precisa se preocupar com as consequências das suas ações e posições. Eles controlam o estado, que existe para servi-los, e não para o bem geral. Em resumo, uma aristocracia.

    Em resumo

    A “crise de representatividade” da democracia é uma consequência direta da política neoliberal que, por um lado retira enormes parcelas do poder das instâncias democráticas, e entrega para uma casta de parasitas e, por outro, naturaliza esta condição, defendendo que é impossível ter um sistema democrático que não seja essa farsa semifeudal. A democracia está em crise, porque é impossível sustentar a importância de instituições que são, em grande medida, decorativas.

    Para que a democracia tenha valor, ela precisa ter o poder de atender as demandas do povo, mas isso é o exato oposto do que as instituições neoliberais propõe.

    P.S.:

    Entender que a democracia já morreu no neoliberalismo é entender também que o papel da esquerda não pode ser defender a democracia, mas construí-la. E sua construção só é possível enfrentando o mercado.

  • Comunismo é poder realizar os próprios sonhos

    Minha graduação em História é divida em dois períodos, na mesma instituição. O primeiro em 2005 e 2006, quando esta era uma instituição filantrópica esperando Godot a estadualização e o segundo de 2016 a 2018, logo após se tornar, finalmente, uma instituição pública estadual.

    Os dez anos entre um e outro e a estadualização mudaram radicalmente o perfil dos estudantes. Muita gente na minha turma de 2005 eram jovens de baixa renda, fazendo sacrifícios para fazer uma licenciatura em busca de alguma estabilidade profissional com um salário ao menos digno. O número dessas pessoas diminuiu brutalmente em dez anos de governos progressistas, distribuição de renda, aumento do salário mínimo, redução do desemprego e aumento brutal do ensino técnico público ou subsidiado.

    Não, a seleção do ensino público, mais concorrida, não me parece o fator mais relevante. As turmas de 2014 e 2015, também eram diferentes. Claro, essas pessoas não desapareceram, mas migraram principalmente para os cursos EAD com mensalidades muito abaixo das que eram cobradas pela instituição. EAD que funciona exatamente porque lida melhor com turmas de cinco estudantes.

    Mas, se estes estudantes diminuíram, o que ocupou seu espaço? Estudantes que tinham uma identificação com a área, que estudavam em busca de realização pessoal e intelectual. que perseguiam seus sonhos, no sentido mais romântico, e menos ligado à necessidade de viver com dignidade. O que seria o público natural de um curso superior, em uma sociedade em que as pessoas possam viver bem fazendo o que gostam, seja isso consertar carros, tomar conta de crianças ou ler documentos do século XVIII.

    Uma sociedade desigual é uma sociedade em que apenas uma minoria privilegiada pode seguir sua vocação, seus sonhos, ou fazer isto do modo que quer, como me prova a lembrança da companheira de partido e lutas, fazendo direito via ProUni em um centro universitário do interior de SP, mesmo tendo passado no vestibular da USP.

    A necessidade de oportunidades para todos é o outro lado da moeda da meritocracia, e qualquer meritocrata que não use este discurso como desculpa para esconder seus privilégios admite isto, e defende a criação de oportunidades. É um ponto central da Democracia Cristã, corrente de direita muito forte na política europeia. (Não confundir com o partido fisiológico que usa este nome no Brasil). Mas está longe de ser exclusividade deles.

    Um ponto central do comunismo, que precisamos aprender a divulgar mais, é a defesa de criar oportunidades para que as pessoas desenvolvam seu potencial.

    Pausa para propaganda soviética:

    Os regimes socialistas são o lugar onde mais se investiu em criar oportunidades, e condições para que as pessoas as explorassem. Onde um filho de um carpinteiro e uma leiteira, como Gagarim, pode se tornar o primeiro homem no espaço. Entendemos que a pobreza, a desigualdade, nos privam do talento de milhões de pessoas, forçadas a desprender todas suas energias em apenas sobreviver, em vez de contribuir com o avanço de toda a sociedade.

    Os direitos, inclusive o de buscar a felicidade, como está na constituição dos EUA, só podem existir em manifestações concretas. O direito à liberdade só existe como direito de escolha entre oportunidades concretas. A desigualdade econômica e social é antes de mais nada uma desigualdade de oportunidades, que depende da política para ser superada, como mostram as leis de cotas em universidades e concursos.

    O objetivo último do comunismo é a universalização das oportunidades, transformar o que hoje é privilégio de poucos em direito de todos (com o perdão do pelonasmo didático). O objetivo do comunismo é que todos tenham meios de perseguir os próprios sonhos. E, impossível pensar em liberdade maior que esta.

  • A diversidade é um imperativo estratégico

    A diversidade é um imperativo estratégico

    Este artigo é o primeiro de uma série que lança reflexões importantes para os debates em torno das eleições municipais de 2024.

    As discussões sobre o espaço que pessoas de minorias sociais, como mulheres, negros, deficientes, pessoas LGBTQIA+ ocupam nos órgãos políticos de esquerda reacendem regularmente, e costumam girar em torno de argumentos éticos e políticos, que são bons, muito bons, mas estamos deixando de lado argumentos estratégicos que deveriam circular mais. Deveriam circular, porque há muita gente que faz questão de não entender que a classe trabalhadora é formada pelas minorias, que não é possível desenvolver o Brasil sem superar as várias formas de discriminação, que as estruturas políticas naturalmente tendem a reproduzir a estrutura social de reservar as posições de poder para uma elite que espelha a elite social.

    Esses argumentos precisam circular principalmente agora, que os partidos se debruçam sobre sua seleção de candidatos para as eleições de 2024, porque as candidaturas, principalmente as majoritárias, são espaços poder e projeção de lideranças.

    Representatividade não é tudo e, por isso mesmo, é fundamental

    O argumento de que a representatividade não é o bastante costuma ser mobilizado pelos seus adversários, mas é exatamente porque a direita é capaz de mobilizar lideranças pertencentes a minorias que a esquerda precisa ser o mais representativa possível. A existência de uma Joice Hasselman ou um Fernando Holiday nos prova que, sim, representatividade não é tudo e o pertencimento a uma minoria não quer dizer a defesa dessa minoria. Mas também nos mostra que a direita disputa as minorias sociais a partir de dentro destes grupos, através de suas lideranças. Se a esquerda não se diversificar e abrir espaço para lideranças destas minorias, estará disputando esses grupos a partir de uma posição de desvantagem: de fora deles. Se representatividade não basta, uma estratégia inteligente é fomentar e projetar quadros das minorias a posições de liderança, para fazer a disputa ideológica dentro desses grupos. Se a esquerda pretende ampliar sua base social, melhorar sua correlação de forças, ela precisa de mais lideranças pertencentes à minorias, e não menos, para poder disputar estes segmentos da sociedade a partir de posições mais vantajosas.

    A direita tem usado, já há vários anos, a estratégia de se apresentar como renovada e moderna a partir da projeção de lideranças pertencentes à minorias. Na eleição do México deste ano a direita será representada por uma mulher de ascendência indígena. No segundo turno da eleição do Equador de 2021 o apoio do terceiro colocado, um indígena, foi fundamental para a vitória da direita. Se a esquerda insistir na estratégia de reservar os espaços internos de poder, como direção partidária ou candidaturas majoritárias, aos homens brancos com mais de 60 anos, já entra nas disputas políticas em posição de desvantagem, abrindo um flanco para ataques adversários.

    A diversidade é a vanguarda do antifascismo

    Há uma grande luta de ideias ocorrendo, em que o discurso fascista defende o fim da igualdade como pilar estruturante da sociedade, restringido minorias a uma subcidadania. O ódio às minorias é mobilizado para justificar medidas que aumentem a desigualdade social, então hoje, a luta pela diversidade não é apenas a defesa de ideais abstratos do liberalismo clássico que o liberalismo econômico esqueceu, mas batalha central da luta antifascista.

    Mas é impossível vencer essa batalha, sem que nos tornemos mais diversos. Toda organização política tem um discurso, e tenta convencer a sociedade deste discurso. Mas, como já está claro para todos os estudiosos da comunicação e educação, as ações dizem mais que as palavras, o que não deveria surpreender nenhum materialista. Se nosso discurso contra a discriminação não se materializa em ações concretas, dentro do nosso próprio grupo, ele vai ser lido como hipocrisia e incoerência pelas pessoas, mesmo que elas não elaborem essa percepção de modo consciente.

    Não é possível vencer o discurso fascista que inferioriza as minorias em uma organização que inferioriza as minorias.

    Estes dois motivos sozinhos indicam que, para as organizações de esquerda, priorizar a diversidade não é mais uma opção, mas um imperativo estratégico, uma necessidade imposta pelo tempo histórico em que vivemos. Mas ainda há um motivo bastante pragmático de porque mais que necessário, é desejável:

    A mediocridade dos privilegiados

    Em uma sociedade desigual como a nossa, as pessoas simplesmente são medidas com réguas diferentes. Enquanto as pessoas das minorias precisam ser realmente excepcionais para serem reconhecidas, a elite branca que possui riqueza intergeracional é reconhecida como genial mesmo que seja apenas medíocre. Não é a toa que todas as empresas que se arriscam a abrir suas posições de poder para membros das minorias veem seus resultados crescerem.

    Quando alguém diz, por exemplo, que é “cria da Maré”, está dizendo que teve a capacidade de alcançar bons resultados mesmo com vários mecanismos de opressão sistêmica jogando contra. Está dizendo que as pessoas mais geniais do Brasil não são os filhos da elite que alcançam bons resultados com todas as condições a favor, mas as que, com tudo jogando contra, ainda assim se destacam. A decisão de colocar uma pessoa com esse tipo de capacidade em posições de liderança e poder, administrando recursos e pessoas, é a decisão de colocar as melhores e mais capacitadas pessoas da nossa geração para comandar nossa ação política.

  • Precisamos reaprender a sonhar

    Precisamos reaprender a sonhar

    Sobre sonhos e utopias

    Neste artigo usamos o jargão1 de Ernst Bloch, um filósofo alemão que dedicou sua vida a estudar a utopia. Para Bloch a palavra “utopia” tem um significado bastante diferente do sentido que ela costuma ter em círculos comunistas. Para ele, o comunismo científico é uma utopia, enquanto o comunismo utópico está mais próximo de um sonho. Sua obra traça uma progressão de organização e desenvolvimento que começa com a imaginação do futuro em que projetamos nossos desejos até os movimentos políticos organizados que buscam materializar esses desejos. Esse último estágio, um ideário coerente, organizado, vinculado a um movimento político que atua na realidade para se materializar, esse é a útopia para Bloch.

    O papel da imaginação na política

    Não é fácil sonhar. O adágio do Realismo Capitalista de Mark Fisher, de que é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo é dolorosamente real. Há muitos motivos para isso. O “fracasso”2 da experiência soviética, o fato da democracia liberal ter se consolidado como modo de governo compulsório, a rejeição da experiência chinesa não ser uma democracia liberal… Tudo isso são empecilhos para imaginarmos um futuro socialista, o que tem influência na atuação política cotidiana. De certo modo, abdicamos de propor o que é essa sociedade socialista que defendemos, porque não há modelos que consideremos aceitáveis, e tentar replicar modelos é simplesmente errado. Nenhum modelo se encaixa em uma sociedade, porque cada sociedade tem suas peculiaridades históricas.

    Mas ao não apresentar o que desejamos a longo prazo estamos dizendo, quando tentamos recrutar alguém para nossas fileiras, “Entre no carro! No caminho te conto o destino!”. Mas, já dizia Lênin, a revolução não é um carro e sim um trem. Todos sabem em qual estação do trem querem descer, antes de entrar nele. A ação política se baseia, antes de mais nada em um desejo. É orientada a um resultado ou, como Bloch chama, é “consequente”.

    Sem uma imaginação capaz de produzir uma imagem de futuro, não existe chance de convencer ninguém a entrar nesse trem. Mas essa imagem não é o caminho, a ação política cotidiana das lutas de cada semana, essa imagem não é um plano detalhado com um passo a passo de 50 anos, essa imagem sequer é a descrição de um mundo de ficção científica. Isso é querer pular etapas. São elementos de uma utopia a ser construída mais adiante. A imagem é exatamente isso, uma visão, não muito clara, no lusco fusco do horizonte, cheia de poesia e sedução: um idílio3.

    A situação paradoxal do comunismo no século XXI é que temos a utopia – desenvolvida, complexa, pensada e consequente – mas perdemos o idílio – incipiente, poético, sedutor e desvairado. O que falta aos partidos de esquerda não são planos e projetos, mas sonhos. Isso explica porque os jovens são tão seduzidos por grupos radicais, que se prendem ao sonho e se recusam a elaborar utopias a partir dele. E porque os grupos da utopia sem sonhos tem dificuldade de se renovar. O ciclo que Bloch descreve, em que o sonho alimenta a utopia, que por usa vez o realiza, está quebrado. Os sonhos não se desenvolvem em utopias consequentes, e as utopias consequentes não se sustentam mais em sonhos.

    Isso nos obriga a nos perguntarmos:

    Com o que sonhamos?

    Com produtos e serviços da sociedade de consumo4. Com um novo celular, um novo carro, uma nova viagem. Quase ninguém sonha com serviços públicos, com creche ou ônibus gratuito. A promessa de churrasco de picanha é muito mais sedutora que a promessa de um “SUS Forte”. O que os serviços públicos podem oferecer, em termos de sonhos capazes de serem vendidos pela publicidade individualista não é a si mesmo, mas suas consequências. O tempo livre que a creche proporciona, a segurança que um SUS dá.

    Mas essa estratégia de publicidade, embora possa ajudar nas disputas políticas imediatas, não muda o status quo. Não muda que os sonhos são todos de realização pessoal em uma sociedade competitiva, o que é a essência da ideologia neoliberal. Nenhum desses serviços públicos, vendidos com as estratégias neoliberais, nos aproxima de conseguir atrair à nossa utopia. É preciso mudar o próprio modo como sonhamos. Os sonhos, Bloch afirma, satisfazem nossas necessidade e desejos, então, se queremos resgatar sonhos que levem ao socialismo, só podemos fazer isso a partir das necessidades não podem ser atendidas pela sociedade de consumo.

    Isso tudo está absurdamente teórico!

    Tentando construir um exemplo para que essa divagação possa fazer um pouco mais de sentido, talvez quem possa mais nos ajudar seja Weber. Como humanos, precisamos não só satisfazer nossas necessidades materiais, mas também sentir que nossa vida tem justificativa, tem sentido. Precisamos nos sentir validados e apreciados por nós mesmos e nossos pares5. Como a sociedade de consumo destruiu as comunidades, nos resta formar grupos de consumidores do mesmo produto, seja café esnobe, série de TV, influencer, ou mesmo tentar virar produto a ser consumido, como ocorre com os próprios influencers. Ambos substitutos fracos, que nunca satisfazem nossa necessidade de comunidade, porque comunidade não é mediada pelo mercado.

    Mas podemos imaginar comunidades…

    Uma vida social, comunitária, construída fora do mercado, pode ser imaginada. Mas há um risco aqui. Essa é a mesma oferta que o fascismo faz: “um retorno6 ao tempo em que existiam laços sociais e comunitários” (apenas entre os iguais e sustentados pela exploração e exclusão dos desiguais). A imagem projetada dessas comunidades precisa ser inclusiva, aberta, acolhedora, solidária e livre de preconceitos. Não é qualquer comunidade. Não pode ser uma reedição das comunidades anteriores.

    Essa imagem de uma vida comunitária forte, inclusiva a solidária é o sonho, o idílio. Oferece a sedução que motiva as pessoas. Mas ela precisa se elaborar em utopia política consequente. Precisa se elaborar em planos de como materializar esse sonho e o transformar em novo normal.

    Praças? Cozinhas comunitárias? Mobilização social a partir dos CRAS? Várias possibilidades.

    O sonho sem uma utopia não tem consequência e não se materializa, mas o movimento político sem sonho não seduz e não engaja. Hoje em dia pensamos muito em termos de políticas públicas, com objetivos muito factuais. Somos bons nisso. Talvez o que precisemos seja começarmos a pensar políticas públicas tentando materializar sonhos. Não qualquer um, mas sonhos fora do mercado. Ao materializar esses sonhos, ao difundir imagens de uma sociedade que se realiza fora do capitalismo, estamos um passo mais parto de voltar a imaginar uma sociedade socialista.

  • Qual o horizonte do comunismo?

    Qual o horizonte do comunismo?

    No mais polêmico lançamento de livro dos últimos anos, Elias Jabbour fez um comentário importante: o horizonte do socialismo hoje em dia é o governo guiado pela razão. Essa discussão de “qual o horizonte do socialismo?”, em qual alvo a gente mira? Essa é uma discussão que fazemos pouco, e sinto que precisávamos fazer mais.

    Afinal, União Soviética caiu, Europa Oriental virou capitalista, os regimes socialistas e Cuba, China, Laos e Vietnã passaram por “reforma e abertura”. A possibilidade de uma revolução violenta é muito remota no Brasil, uma vitória eleitoral acachapante dos comunistas também é uma possibilidade improvável e, pior, parece depender de clareza sobre qual este horizonte. Difícil convencer o eleitorado sem um plano claro de para onde ir. Qual o alvo então? Qual o horizonte onde mirar?

    Mas um governo orientado pela razão parece antes uma utopia weberiana que uma marxista, não? O que ocorreu entre os anos 70 do século XX, em que as revoluções eram possíveis, e aconteceram, e os nossos anos 20 do século XXI, cuja utopia lembra o século XIX?

    Existe uma potência singular por trás do argumento de Elias Jabbour, uma verdade implícita: a razão defende o socialismo, e o sistema neoliberal é irracional.

    É difícil sustentar racionalmente um sistema onde 99% da população possui metade da riqueza. Argumentos neoliberais, como a “economia do gotejamento” são desmentidos pelos fatos. É impossível justificar pela razão a existência de bilionários em países onde pessoas passam fome. E, ainda mais insustentável defender políticas econômicas, que neste contexto, favorecem os bilionários e aprofundam a fome.

    A razão pode descrever estes sistemas, mas nunca defendê-los.

    O capitalismo se sustenta não pela razão, mas pela falta dela. Pelos automatismos que são incutidos nas pessoas pela educação, pela mídia, pela tradição. Pela defesa cega e irracional da “família”, da “meritocracia”. O simples fato de aplicar a razão ao governo, nos leva à conclusão básica da República: administrar o comum para o bem de todos. Um ideal iluminista.

    Citação de Darcy Ribeiro com uma foto dele sorrindo.
"A crise na educação no Brasil não é uma crise; é um projeto."

    A ideologia capitalista bota uma fantasia de racionalidade no capitalismo, porque utiliza a ciência e a técnica para administrar a produção, porque planeja as atividades futuras. Mas essa racionalidade do setor privado do capitalismo não se estende ao governo ou ao Estado, cujas ações se guiam não pela razão da República, mas por defender e perpetuar os privilégios de poucos às custas de muitos. Sob o capitalismo, o Estado é um projeto de exclusão, cuja crueldade precisa ser mascarada para que possa se passar por racional.

    Mas qual razão poderia aumentar a taxa de juros em meio a uma recessão, como nosso Banco Central tem feito? Qual razão poderia criar o Teto de Gastos em um país que precisa desesperadamente de investimento público? Que razão poderia aplicar um três golpes de estado em nossa história? Que razão pode glorificar a tortura?

    Não é a razão não guia os governos no capitalismo, mas os interesses de uma pequena elite em manter funcionando a máquina de fabricar miséria que nosso governo foi projetado para ser. O objetivo que as instituições democráticas dizem que defendem são todos racionais. Os objetivos que o liberalismo diz que defende são todos racionais, e se aproximam de vários objetivos comunistas. Mas o que as instituições realmente fazem é irracional. O que o neoliberalismo defende é indefensável.

    Sobre isso, nosso próximo post vai mergulhar na má-fé institucional.

  • Como fabricar um fascista (em nome de Deus)

    Como fabricar um fascista (em nome de Deus)

    Hoje os evangélicos descobriram que Bolsonaro frequenta lojas/templos da maçonaria. A pergunta que eu me faço é, como não descobriram isso quatro anos atrás, quando ele começou a campanha a presidente, e visitava a maçonaria semana sim, semana também?

    Gen. Mourão, vice de Bolsonaro, é maçom e se elegeu senador pelo RS com voto evangélico. Em, literalmente, todos os jornais do Brasil tem imagens dele com avental de maçom. Carla Zambelli, uma de suas apoiadoras de primeira hora, se casou em um templo maçônico e teve Sérgio Moro, ex-juiz ladrão, ex-ministro de Bolsonaro, como padrinho. Isso não devia espantar ninguém, pelo simples fato que Bolsonaro é um ex-oficial de exército, expulso em desonra, depois de planejar atentatos terroristas. O oficialato do exército brasileiro sempre esteve cheio de maçons. Marechais Deodoro e Floriano, primeiros presidentes do Brasil, eram maçons. “Milico é maçon ao contrário”, digo de vez em quando como brincadeira. Então, quando, literalmente, todos os jornais do Brasil publicaram fotos do Bolsonaro visitando lojas maçônicas, sorridente ao lado de maçons, eu não tive o menor vestígio de surpresa.

    • Zambelli de vestido de noiva e seu esposo de farda branca em primeiro plano. Ao fundo um balcão com 3 homens e atrás dele o triangulo com o olho da maçonaria.
    • Mourão com avental da maçonaria ao lado de outros homens brancos de aventais e colares
    • Bolsonaro ao lado de homens cm avental da maçonaria e uma bandeira da loja Grande Oriente

    Se são tantos os motivos para saber que Bolsonaro está cercado de maçons, provavelmente desde que era um cadete na Agulhas Negras, como uma parcela tão grande de brasileiros descobriu isso hoje, quatro de outubro do ano de nosso senhor Jesus Cristo de 2022? É preciso que essas pessoas sejam mais que desinformadas. Para uma parcela enorme da população ignorar completamente um fato que é público e notório é preciso controlar os meios de comunicação, para impedir que eles noticiem o que é público e notório. É preciso censura. E não faz sentido falar de censura quando, como dito, isso foi publicado em, literalmente, todos os jornais do Brasil. Então, estamos diante de um fenômeno mais interessante. Vamos chamar de “segregação informacional”.

    Igrejas evangélicas costumam ter canais de TV, jornais, e recomendar que seus fiéis acessem informações apenas destas fontes. O objetivo é evitar ser contaminado por um mundo de pecado, evitar a tentação é um passo anterior a pedir para Deus “não nos deixei cair em tentação”. Se essa parcela da população voluntariamente seleciona suas fontes de informação, para fazer ela ignorar algo não é preciso censurar toda a imprensa, apenas essa mídia evangélica. E sim, no momento em que escrevo a página inicial do portal R7, da Igreja Universal não tem nenhuma menção à polêmica do dia, ao contrário da Folha, por exemplo.

    E, pode me chamar de teórico da conspiração, mas isso exige consciência. Quem comanda estes meios de comunicação evangélicos decidiu, conscientemente esconder do público evangélico, informações que desabonem Bolsonaro. Estes meios de comunicação decidiram que não são jornais, mas panfletos políticos defendendo um candidato.

    Para fabricar um fascista que defenda o indefensável é preciso fazer ele acreditar em muitas mentiras. Editar a realidade em que ele vive através de muita propaganda. A atitude evangélica de evitar a imprensa laica os deixou vulneráveis à má fé de seus dirigentes que esconderam deles o que “todos sabem”. Que Bolsonaro é rodeado de maçons, que seu governo foi uma catśtrofe, que ele é o assassino de pelo menos 400.000 pessoas que não precisavam ter morrido na pandemia, que é corrupto até os ossos. Esses sacerdotes que são donos de meios de comunicação incentivam seus fiéis a consumirem apenas estes meios de comunicação e os usam para ganhos financeiros e políticos, espalhando pânico moral e mentindo para seus féis. Essa edição da realidade através da mídia que as igrejas fazem tem feito com que, cada dia mais, seja difícil diferenciar um evangélico de um fascista. E é impossível que isso seja obra do acaso. Estamos diante de um caso de má fé clara.

    Precisamos urgentemente e uma regulação da mídia e, provavelmente, a parte mais importante dessa regulação seja impedir a simbiose entre religião e mídia.

  • Bolsonaro e o Kitman

    Na teologia muçulmana há um conceito interessante: o kitman. É a pessoa que defende um regime, mesmo tendo críticas a ele. Surgiu por conta de perseguições religiosas, da necessidade de manter a crença secreta, enquanto fingia outra. Em 1953, Czesław Miłosz se apropriou do termo para falar dos intelectuais poloneses que defendiam a dominação soviética do país. Não vejo termo melhor para falar de alguns dos apoiadores do governo Bolsonaro.

    Claro, Bolsonaro tem um núcleo duro de apoio formado por fascistas-preconceituosos-homomísicos7-etc. Mas tem um grupo infinitamente maior de kitmans, que guardam crenças contraditórias e dissimulam suas críticas.

    São as pessoas que apoiam um governo corrupto e ineficiente por conta da promessa de uma economia liberal, as que apoiam um governo violento e autoritário por conta da promessa de um espaço maior da religião na política, os que apoiam um governo criminoso, ligado à máfia8 por conta da promessa de garantir a segurança. Essas pessoas não concordam com a primeira parte da oração, mas guardam para si esta discordância por conta da segunda.

    Miłosz, falava de um contexto autoritário, em que o Estado perseguia dissidentes, e as pessoas concordavam pelo medo de represálias. Um contexto em que temos mais facilidade de perdoar, porque as orações eram “Eu não concordo com a censura, mas não posso perder meu emprego”. No Brasil de hoje, os kitman não precisam sequer dessa ameaça dura. Claro, há um mal estar de ser considerado um traidor, e o bolsonarismo, como bom totalitarismo em formação, quer sempre perseguir aqueles que não são dedicados o bastante à causa. (O que explica os conflitos internos entre os doidos olavistas e os setores mais racionais, mas isso é tema para outro post)

    Essa diferença de contexto é importante, porque enquanto o que justifica o silêncio do kitman tradicional é o medo, a insegurança, é bem pouco difícil achar explicações que não a hipocrisia e o egoísmo para estes apoiadores parciais de Bolsonaro.

    Então, salientar, denunciar estas contradições nos ajuda a reduzir o apoio desses grupos. Mostrar os pés de barro do santo. Mas se esses apoiadores embarcam no duplipensar9 por interesses, e não por medo, é muito pequena a chance de que façam uma autocrítica deste embarque. Atacar o kitman provavelmente vai fazer com que aprofunde seu apoio. Atacar a contradição pode tornar essa contradição insustentável.