Em 2003 Humberto Guessinger e Paulinho Galvão escreveram “Fusão a frio”, avisando sobre as incertezas desse encontro entre informação e entretenimento.
“Ninguém sabe como serão os filhos deste casamento
Fusão a Frio, Humberto Guessinger e Paulinho Galvão em Dançando no Campo Minado, 2003.
indústria da informação,indústria do entretenimento
promessas de fusão à frio, desvio de comportamento”
Talvez veja nessa fusão antes de mais nada na mudança dos documentários, que passaram de programas informativos para essa tentativa canhestra de adicionar ação e drama, mas podemos ver também nos telejornais1, programas de auditório, revistas semanais e, claro, canais do YouTube.
O ideal da república esclarecida parte do pressuposto que cidadãs e cidadãos participem de forma qualificada, esclarecida e engajada. Mas este casamento de informação e entretenimento não contribui nem para o engajamento nem para o esclarecimento. Processar informação é esforço, trabalhoso, e o entretenimento precisa de gratificação imediata. Por isso a política é transformada em uma espécie de esporte. Porque a vitória do seu time oferece gratificação.
O grande problema do esporte é que ele é que seu resultado é definido pelo seleto grupo de jogadores, técnicos, administradores, médicos, etc. A nós, espectadores e torcedores, resta observar e torcer. O problema central desta abordagem não é que ela reduza o engajamento, que é fundamental para a república (e reduz), mas que ela leva a uma degeneração da política.
A política deixa de ser algo que nos diz respeito, que afeta nossa vida, e da qual podemos participar de modo ativo, para ser algo que observamos relativamente passivos, com ganas de vencer o adversário. Um jogo entre alguns atores privilegiados, que nos diz respeito apenas enquanto apoiadores de um dos lados.
A antipolítica se alimenta dessa visão, que a política diz respeito apenas a estes jogadores e seus torcedores, em vez de se tratar do nosso destino compartilhado, de nossa vida coletiva.
O radicalismo crescente, a impossibilidade de construir acordos e conciliações tem se beneficia com esse desvirtuamento. Quando você retira da política seu cerne, seu significado, que é ser um mecanismo de decidir nosso destino compartilhado, e a reduz apenas à sua aparência de conflito, você retira o significado deste conflito, que está nas diferente estratégias para melhorar essa vida compartilhada. Sobra um conflito pelo conflito, como os dos torneios esportivos.
O mais assustador nos últimos anos foi a normalização do preconceito, da discriminação e da incitação à violência como se fossem posições políticas aceitáveis. Uma explicação possível é exatamente este esvaziamento do significado da política.
Outra é que a divulgação dessas posições quebra a espiral do silêncio em torno delas, cativando um grupo de espectadores que discorda dos valores mais básicos do Ocidente. Oferecer gratificação para estes espectadores não poderia ser uma função da informação, mas bem pode ser uma do entretenimento.
Precisamos resgatar o sentido da política, e isto inclui negar o modo como o noticiário político se organiza. Apontar as consequências das escolhas políticas, consequências bem reais, vida e morte de pessoas. Resgatar a percepção que a política é feita em conjunto por todos nós, e não por um pequeno grupo de privilegiados.
Infelizmente isto significa também pensar novas formas de comunicação, que possam incentivar a responsabilidade em vez do conflito vazio e a participação em vez da torcida.