Sobre sonhos e utopias
Neste artigo usamos o jargão1 de Ernst Bloch, um filósofo alemão que dedicou sua vida a estudar a utopia. Para Bloch a palavra “utopia” tem um significado bastante diferente do sentido que ela costuma ter em círculos comunistas. Para ele, o comunismo científico é uma utopia, enquanto o comunismo utópico está mais próximo de um sonho. Sua obra traça uma progressão de organização e desenvolvimento que começa com a imaginação do futuro em que projetamos nossos desejos até os movimentos políticos organizados que buscam materializar esses desejos. Esse último estágio, um ideário coerente, organizado, vinculado a um movimento político que atua na realidade para se materializar, esse é a útopia para Bloch.
O papel da imaginação na política
Não é fácil sonhar. O adágio do Realismo Capitalista de Mark Fisher, de que é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo é dolorosamente real. Há muitos motivos para isso. O “fracasso”2 da experiência soviética, o fato da democracia liberal ter se consolidado como modo de governo compulsório, a rejeição da experiência chinesa não ser uma democracia liberal… Tudo isso são empecilhos para imaginarmos um futuro socialista, o que tem influência na atuação política cotidiana. De certo modo, abdicamos de propor o que é essa sociedade socialista que defendemos, porque não há modelos que consideremos aceitáveis, e tentar replicar modelos é simplesmente errado. Nenhum modelo se encaixa em uma sociedade, porque cada sociedade tem suas peculiaridades históricas.
Mas ao não apresentar o que desejamos a longo prazo estamos dizendo, quando tentamos recrutar alguém para nossas fileiras, “Entre no carro! No caminho te conto o destino!”. Mas, já dizia Lênin, a revolução não é um carro e sim um trem. Todos sabem em qual estação do trem querem descer, antes de entrar nele. A ação política se baseia, antes de mais nada em um desejo. É orientada a um resultado ou, como Bloch chama, é “consequente”.
Sem uma imaginação capaz de produzir uma imagem de futuro, não existe chance de convencer ninguém a entrar nesse trem. Mas essa imagem não é o caminho, a ação política cotidiana das lutas de cada semana, essa imagem não é um plano detalhado com um passo a passo de 50 anos, essa imagem sequer é a descrição de um mundo de ficção científica. Isso é querer pular etapas. São elementos de uma utopia a ser construída mais adiante. A imagem é exatamente isso, uma visão, não muito clara, no lusco fusco do horizonte, cheia de poesia e sedução: um idílio3.
A situação paradoxal do comunismo no século XXI é que temos a utopia – desenvolvida, complexa, pensada e consequente – mas perdemos o idílio – incipiente, poético, sedutor e desvairado. O que falta aos partidos de esquerda não são planos e projetos, mas sonhos. Isso explica porque os jovens são tão seduzidos por grupos radicais, que se prendem ao sonho e se recusam a elaborar utopias a partir dele. E porque os grupos da utopia sem sonhos tem dificuldade de se renovar. O ciclo que Bloch descreve, em que o sonho alimenta a utopia, que por usa vez o realiza, está quebrado. Os sonhos não se desenvolvem em utopias consequentes, e as utopias consequentes não se sustentam mais em sonhos.
Isso nos obriga a nos perguntarmos:
Com o que sonhamos?
Com produtos e serviços da sociedade de consumo4. Com um novo celular, um novo carro, uma nova viagem. Quase ninguém sonha com serviços públicos, com creche ou ônibus gratuito. A promessa de churrasco de picanha é muito mais sedutora que a promessa de um “SUS Forte”. O que os serviços públicos podem oferecer, em termos de sonhos capazes de serem vendidos pela publicidade individualista não é a si mesmo, mas suas consequências. O tempo livre que a creche proporciona, a segurança que um SUS dá.
Mas essa estratégia de publicidade, embora possa ajudar nas disputas políticas imediatas, não muda o status quo. Não muda que os sonhos são todos de realização pessoal em uma sociedade competitiva, o que é a essência da ideologia neoliberal. Nenhum desses serviços públicos, vendidos com as estratégias neoliberais, nos aproxima de conseguir atrair à nossa utopia. É preciso mudar o próprio modo como sonhamos. Os sonhos, Bloch afirma, satisfazem nossas necessidade e desejos, então, se queremos resgatar sonhos que levem ao socialismo, só podemos fazer isso a partir das necessidades não podem ser atendidas pela sociedade de consumo.
Isso tudo está absurdamente teórico!
Tentando construir um exemplo para que essa divagação possa fazer um pouco mais de sentido, talvez quem possa mais nos ajudar seja Weber. Como humanos, precisamos não só satisfazer nossas necessidades materiais, mas também sentir que nossa vida tem justificativa, tem sentido. Precisamos nos sentir validados e apreciados por nós mesmos e nossos pares5. Como a sociedade de consumo destruiu as comunidades, nos resta formar grupos de consumidores do mesmo produto, seja café esnobe, série de TV, influencer, ou mesmo tentar virar produto a ser consumido, como ocorre com os próprios influencers. Ambos substitutos fracos, que nunca satisfazem nossa necessidade de comunidade, porque comunidade não é mediada pelo mercado.
Mas podemos imaginar comunidades…
Uma vida social, comunitária, construída fora do mercado, pode ser imaginada. Mas há um risco aqui. Essa é a mesma oferta que o fascismo faz: “um retorno6 ao tempo em que existiam laços sociais e comunitários” (apenas entre os iguais e sustentados pela exploração e exclusão dos desiguais). A imagem projetada dessas comunidades precisa ser inclusiva, aberta, acolhedora, solidária e livre de preconceitos. Não é qualquer comunidade. Não pode ser uma reedição das comunidades anteriores.
Essa imagem de uma vida comunitária forte, inclusiva a solidária é o sonho, o idílio. Oferece a sedução que motiva as pessoas. Mas ela precisa se elaborar em utopia política consequente. Precisa se elaborar em planos de como materializar esse sonho e o transformar em novo normal.
Praças? Cozinhas comunitárias? Mobilização social a partir dos CRAS? Várias possibilidades.
O sonho sem uma utopia não tem consequência e não se materializa, mas o movimento político sem sonho não seduz e não engaja. Hoje em dia pensamos muito em termos de políticas públicas, com objetivos muito factuais. Somos bons nisso. Talvez o que precisemos seja começarmos a pensar políticas públicas tentando materializar sonhos. Não qualquer um, mas sonhos fora do mercado. Ao materializar esses sonhos, ao difundir imagens de uma sociedade que se realiza fora do capitalismo, estamos um passo mais parto de voltar a imaginar uma sociedade socialista.
Notas
- Jargão são termos que os especialistas de uma área usam para facilitar e simplificar a comunicação. Infelizmente, aqueles que não são especialistas e não conhecem esse jargão ficam confusos, porque muitas vezes esse jargão tem palavras que as pessoas não conhecem, ou as palavras, mesmo conhecidas, tem significados diferentes do seu uso normal. Todas as áreas do conhecimento tem jargões, do conserto de bicicletas à física de foguetes, e usar jargão não é um problema em si, mas é importante tentar comunicar para quem não conhece esse jargão o que essas palavras significam.
- Podemos debater a noção de fracasso do socialismo e mesmo do sucesso do capitalismo. O regime soviético teve várias conquistas que são eclipsadas pelo nosso olhar que focaliza apenas no colapso do regime.
- Idílio é uma boa palavra, porque ao mesmo tempo que é sinônimo de sonho e utopia no dicionário, é também um gênero poético, que se baseia na descrição de ambientes. O objetivo de usar idílio é exatamente se valer dessa polissemia. É poesia, é descrição, é sonho e é utopia, no sentido literário.
- Esse é um fenômeno estudo sob o nome da “subjetivação neoliberal” ou, traduzindo para jargão marxista, como a ideologia neoliberal nos afeta ou ainda, traduzindo o jargão, como a organização do capitalismo na sua fase neoliberal afeta nossa personalidade, nosso modo de ser, sentir, desejar e pensar.
- Isso é uma simplificação enorme do conceito de “justificação” em Weber.
- Para se aprofundar em como o que o neofascismo propõe é uma “volta”
ao passadoa uma versão idealizada do passado que nunca existiu, o ensaio Retrotopia de Zygmunt Bauman é um excelente material.