Categoria: Teoria

  • A falsa contradição entre reforma e revolução

    Curiosamente, o debate entre reforma e revolução é um debate importante no Brasil, onde alguns grupos comunistas rejeitam a luta eleitoral argumentando sobre a sua incapacidade de produzir transformações profundas do sistema econômico, enquanto outros grupos apontam a impossibilidade de acumulação de forças para uma revolução clássica em uma sociedade altamente ocidentalizada. Como todos os problemas que precisam de uma solução dialética, ambos os lados estão certos, mas também errados.

    Antes de continuar é importante definir alguns termos para reduzir os mal entendidos. Socialistas e comunistas entendem ser preciso superar o capitalismo, e a diferença entre abordagens revolucionária ou reformista diz respeito somente aos meios de alcançar o socialismo. Este texto não é sobre social-democratas, também chamados de reformistas, que entendem que não é preciso superar o capitalismo, mas somente o controlar e regular, via políticas sociais.

    O argumento a favor da luta eleitoral e da participação no estado tem várias origens e antecedentes, mas hoje em dia uma toma normalmente a forma do da necessidade de combater a hegemonia ideológica do capitalismo, no sentido gramsciano, para criar condições subjetivas para a revolução. Para Gramsci, as sociedades ocidentais estariam muito presas à ideologia capitalista para aceitar uma revolução como legítima, e essa posição é normalmente considerada verdadeira, inclusive por quem defende a luta revolucionária. O debate gira em torno de quais seriam as melhores estratégias de realizar a luta ideológica contra hegemônica: revolucionários defendendo organizações de base e ação política, mas não eleitoral, e reformistas defendem o uso das eleições e a administração do estado.

    Porém, assim como Gramsci faz suas reflexões à luz da derrota dos comunistas italianos, temos elementos o bastante para refletir à luz das experiências e limites de reformas em vários países do mundo. Vamos usar os casos de Bolívia, Brasil, Venezuela, e Nicarágua para refletir sobre o tema. Todos esses países foram membros da chamada “onda rosa” da América Latina, em que governos de esquerda conseguiram acesso aos governos centrais de vários países, implantando políticas sociais e mudando profundamente os países. E todos eles enfrentaram grandes crises políticas que tentaram pôr fim a estes governos, com sucesso, nos casos do Brasil e Bolívia.

    Ou seja, os revolucionários estão mais que certos quando apontam que existe um limite claro e violento para a estratégia reformista. As forças reacionárias de oposição a estes governos de esquerda promoveram o golpe policial-miliar na Bolívia, o golpe parlamentar no Brasil, a agitação e tentativas de sabotagem do governo na Venezuela e a tentava de revolução colorida na Nicarágua.

    Este texto, propositalmente, não discute se as experiências venezuelana e nicaraguense são, de fato socialistas, ou se suas lideranças agiram bem ou mal. O objetivo é discutir somente as estratégias de resistência às reações conservadoras.

    Na Bolívia e no Brasil, após os golpes, os governos reacionários foram derrotados eleitoralmente, com a vitória de Lula e Arce, em um desenvolvimento alinhado com os princípios da democracia liberal e que, até certo ponto, restaurou a situação anterior de um governo reformista à espera de uma nova investida reacionária. Na Venezuela e Nicarágua, por outro lado, tivemos governos que resistiram às intentonas reacionárias e consolidaram seu poder, sendo por isso considerados ditaduras pela comunidade internacional e sofrendo vários tipos de sanções.

    Essa consolidação do poder foi usada pelos governos para implantar reformas mais profundas, como a diversificação da economia venezuelana, tentada por décadas no seu período “democrático”, sempre sem sucesso, ou o uso de fundos públicos e estatais para nacionalizar e estatizar setores estratégicos da economia na Nicarágua, o que é denunciado como “corrupção”.

    A grande questão que se coloca é: o que diferencia Venezuela e Nicarágua e Brasil e Bolívia? Qual elemento estrutural explica o governo extremamente popular do MAS ser vítima de um golpe e o governo da Nicarágua, criticado até por partes significativas da esquerda internacional, se sustentar?

    “Poder político cresce do cano de uma arma” – Mao Zedong

    Nas crises, o movimento bolivariano se sustenta no exército, a FSLN na Polícia Nacional, criada durante o período sandinista, em contraponto ao exército. O Estado é o órgão que possui o monopólio da violência legítima e seus braços armados podem se mobilizar para derrubar governos, como ocorreu na Bolívia, com o golpe policial/militar ou no Brasil, com a Polícia Federal sabotando o governo através da Lava Jato e o exército impedindo a atuação política de Lula para impedir o golpe. Ou podem apoiar estado de golpes mobilizadas a partir da sociedade civil.

    O problema da social-democracia é ilusão de que vivemos em uma democracia, e não em uma ditadura da burguesia, que só tolera a democracia se for ela a ganhar. Isso abre um flanco de ataque impossível de fechar, porque diante de taxas de lucro decrescentes, a burguesia sempre vai apelar à violência.

    Isso quer dizer que socialistas e comunistas podem defender e implementar reformas como parte de uma estratégia revolucionária, desde que tenham consciência de que estão jogando no campo adversário, e desenvolvam políticas para garantir que o monopólio da força não seja usado contra o próprio governo. Não é possível esquecer que o estado burguês e a democracia burguesa são instrumentos de poder da burguesia, que ela vai acionar para garantir seus interesses.

    Neutralizar o caráter de classe dos aparatos de força do estado, e/ou construir aparatos de força autônomos dos trabalhadores é parte essencial de qualquer estratégia socialista que inclua a reforma entre suas táticas.

  • Lênin não seria um tiktoker: a relação da esquerda revolucionária com as mídias sociais

    Lênin não seria um tiktoker: a relação da esquerda revolucionária com as mídias sociais

    Existe uma grande discussão em torno da contribuição que a militância online, nas suas mais variadas formas, pode trazer para a esquerda, e este texto não deixa de ser uma crítica, mas se quer uma crítica fraterna e respeitosa, feita por quem admira a maior parte dos produtores de conteúdo de esquerda.

    A produção de conteúdo para o YouTube ou Twitch gerou uma oportunidade curiosa, e até mesmo contraditória, em que é possível profissionalizar a militância comunista a partir de pagamentos realizados ou intermediados por grandes corporações. Algumas pessoas se aproveitaram dessa situação para criar canais de grande audiência, conseguindo fazer agitação e propaganda em uma escala impensável alguns anos atrás. Ao mesmo tempo, essas pessoas se submetem ao mesmo regime de trabalho superexplorado e precarizado imposto por essas plataformas através dos seus algorítimos.

    A formulação “se Lênin fosse vivo, provavelmente, seria um tiktoker” é um ponto de partida interessante para analisar a relação da esquerda revolucionária com as mídias sociais. Se, sim, por um lado, o leninismo tem uma grande ênfase em lidar com o povo real e ir onde quer que ele esteja, por outro lado, valoriza muito a autonomia e resiliência do movimento diante da repressão. Um produtor de conteúdo é uma mera peça numa grande maquinaria de produção e reprodução de subjetividade, sendo preciso participar dessa maquinaria para ter um contato inicial com o povo. Ao mesmo tempo, participar é se reduzir a uma posição com muito pouco poder, e a maior preocupação do leninismo é como os trabalhadores podem conquistar o poder.

    O que temos aqui é uma contradição que, como a dialética nos ensina, não pode ser resolvida dentro dos termos em que se coloca. É preciso ampliar o escopo para produzir sínteses. Para conquistar o poder as organizações leninistas precisam acumular forças sociais de vários modos, participando em vários segmentos da sociedade, inclusive na comunicação, nos termos em que a comunicação ocorre na sociedade. Mas qualquer força revolucionária deve esperar uma oposição ferrenha por parte do sistema contra o qual ela se organiza.

    Lênin defendia que o partido precisa ter o próprio jornal, ou seja, que as forças revolucionárias precisam controlar o meio de difusão de suas mensagens já que seu caráter revolucionário fará com que perca acesso aos jornais burgueses assim que acumular força o bastante para incomodar os donos do poder. “Jornal” aqui não se refere necessariamente ao jornal físico, mas o meio de difusão de ideias. Continuando a analogia, ter o próprio jornal não é equivalente a ter o próprio canal no YouTube ou Servidor no Discord, mas a ter o próprio YouTube ou Discord. Nossa experiência ensina que a ameaça da repressão não são fantasias conspiratórias. As plataformas não são politicamente neutras, favorecem conteúdos de extrema-direita, derrubam desproporcionalmente mais perfis de esquerda que de direita. Sim, as pessoas estão nelas, então é preciso participar delas para fazer agitação, mas é um risco depender delas para nossa comunicação e é insensato depender delas para viabilizar financeiramente a atividade militante.

    Grande parte da esquerda revolucionária aplica a estratégia do “funil de conteúdo”, elaborada por Luide Matos, segundo a qual é necessário ter mensagens diferentes em plataformas diferentes, e guiar as pessoas da plataforma mais superficial, no topo do funil, para a mais profunda, no fundo, a medida que ela se aproxima ideologicamente. Esta estratégia é muito adequada para superar a contradição posta, por conceber a agitação e propaganda como um processo, mas para que isso ocorra é preciso uma correção de curso importante: o fundo, talvez até o meio do funil, devem ser fora das mídias sociais corporativas.

    O funil de conteúdo é uma boa estratégia, e tem dado bons resultados para muitos comunicadores, mas observar as relações de poder nas mídias sociais nos obriga a este adendo. É impossível construir um poder comunicacional real estando à mercê dos termos de uso e vontades questionáveis das plataformas. Isso quer dizer que a “venda” no fundo do funil precisa ocorrer em espaços controlados pelas forças revolucionárias, e que o funil deve direcionar as pessoas para fora das mídias capitalistas.

    Fazer essa correção de curso pode nos trazer duas grandes conquistas. Primeiro, menos exploração e adoecimento de nossos comunicadores. Garantir que a sustentação financeira ocorra através das nossas próprias plataformas nos protege, ao menos em parte, das desmonetizações, shadowbans e mudanças arbitrárias de regras. Segundo, ter os membros mais engajados da comunidade em espaços mais saudáveis, controlados por nós, que não estão ativamente tentando distraí-los e desviar sua atenção para outros assuntos facilita o acesso, mobilização e organização políticas.

    Mas é preciso reparar que um site de notícias tradicional, não se é um fundo de funil adequado. Voltando a Luide Matos, “pessoas gostam de pessoas”, não do notícias em um site. O fundo do funil precisa de um forte componente social, similar às plataformas sociais que usamos. É necessário, literalmente, começar a pensar em termos de que “ter o próprio jornal”, hoje em dia, significa ter a própria plataforma. Não necessariamente como ponto de partida, mas como objetivo. O ICL, por exemplo, começou sua plataforma de cursos no HotMart, mas a migrou para o WordPress. Fazer essa mudança nos obriga a debater suas condições materiais. Assim como as oficinas tipográficas que imprimiam e reproduziam o Iskra precisavam ser debatidas pelos revolucionários russos, os softwares e hospedagens de sites precisam ser debatidos pelos revolucionários atuais.

    Existe acúmulo. A Rede das Produtoras Colaborativas, a Rede Sacix, Coletivo Digital, pontos e pontões de cultura digital, vem estudando e debatendo soluções, como a adoção de plataformas federadas. Exige trabalho, mas eleva nosso grau de organização, sustentabilidade, independência e resiliência.

    Com o perdão ao quixotismo, combater as corporações digitais passa por libertar as pessoas de seus jardins murados. Fazer com que elas sangrem usuários até a anemia mediante uma guerra popular prolongada.

    Reações no Fediverso
  • O que mudou em 2013?

    Eu gosto de dizer que, sem 2013 não haveria 2016 e a estratégia petista de conciliação com o PMDB e outros partidos do Arenão, teria mais vários anos de sobrevida. Mas isso tem pouco a ver com as revoltas serem uma “revolução colorida” engendrada pela CIA ou uma armadilha da extrema-direita. Tem mais a ver com 2013 ser um terremoto, que mudou de lugar as placas tectônicas sobre as quais se assenta a política nacional.

    Nuvens e placas tectônicas

    Tancredo Neves dizia que a política é como as nuvens, cada vez que você olha vê algo diferente, para explicar a política de alianças móveis das oligarquias fisiocráticas das quais ele próprio fazia parte, que em vez de firmes posições ideológicas, mudava de lado para ser estar sempre perto do governo.

    Mesmo ele estando certo, há outro movimento, mais profundo na política, cuja melhor metáfora são as placas tectônicas, que explica, por exemplo, a segunda eleição de Lula. Se o movimento dos agentes políticos são as nuvens, a movimentação do consenso popular são as placas tectônicas, que ocorre aos poucos e de modo imperceptível. Os analistas podem ver o resultado do movimento, mas não o movimento em si. André Singer defende que o Lulismo surgiu durante o primeiro mandato de Lula, e se através de uma mudança da sua base de apoio rumo à população mais pobre e se afastando das classes médias, que apoiavam o PT por conta de posições como o combate à corrupção e se desiludiu com as denúncias do “mensalão”. Isso seria um exemplo de movimento das placas tectônicas. Nesse sentido que 2013 é um terremoto. É uma mudança profunda do consenso popular, mas que ocorre em uma explosão, em vez de gradual e imperceptivelmente.

    Mas o que mudou?

    Essa é a grande questão, no fim das contas. O que mudou em 2013? A minha hipótese, um pouco abstrata é: o critério de avaliação da realidade. Em 2013 o eleitor médio passou a dar mais importância aos critérios morais que aos critérios econômicos para avaliar a realidade e, naturalmente, mudando os critérios, mudam os resultados.

    Argumentos

    Este gráfico, extraído da pesquisa CNT/MDA permite explicar bem o argumento. A mudança brusca de junho para julho de 2013 é a pista mais importante. As jornadas de julho calharam de acontecer um mês depois da pesquisa anterior, em uma época em que não ocorreu nenhuma grande mudança na vida econômica do país. Comparando a percepção econômica das duas, as respostas são muito parecidas. A única grande mudança foram as jornadas e, felizmente, a pesquisa pergunta sobre a percepção delas. A maioria acreditava que a reivindicação mais importante era o fim da corrupção (40%) e que o motivo delas era a insatisfação com a corrupção (55%). Não importa que tenha começado com uma pauta de transporte coletivo. O que se entendeu foi a pauta moralista da corrupção.

    Alias, a maioria tinha uma avaliação mais positiva da reação de Dilma diante das manifestações que do congresso e 67,9% gostou da proposta que ela fez de um plebiscito sobre a reforma política, o que nos coloca diante da situação curiosa do eleitor que odeia os deputados que elege reiteradamente, mas divago…

    Singer aponta que a classe média se afastou de Lula com o Mensalão porque um dos motivos do seu apoio ao PT era ver o partido como um partido anticorrupção. Ao mesmo tempo, as políticas sociais do primeiro governo Lula conseguiram conquistar o apoio de uma população mais pobre, que percebeu mudanças econômicas na sua vida. Essa mudança da base de apoio explicaria a reeleição de Lula e ele sobreviver às denúncias. Seu apoio não diminuiu, mas mudou de composição.

    Ao longo dos anos, a insatisfação com a corrupção adormeceu, podemos supor que devido ao sucesso econômico das administrações petistas, mas explodiu em 2013. Podemos, inclusive, supor que pela mudança de perfil da população, que tendo escapado da pobreza, passou a dar valor a outras coisas.

    Mas vamos à mudança mais brusca, entre setembro de 2014 e março de 2015. Entre estas duas datas, houve a eleição em outubro em que Dilma foi reeleita com 51,6% dos votos, então podemos supor que essa mudança brusca de opinião ocorreu entre 26 de outubro e 16 de março, data da pesquisa. Na verdade, outras pesquisas, que não são estatisticamente comparáveis, concordam com os dados da CNT/MDA quanto aos dados gerais e apontam que a avaliação de Dilma caiu meteoricamente assim que assumiu o segundo mandato.

    Muita gente da esquerda defende a hipótese do “estelionato eleitoral”, de que essa queda de popularidade se deveu ao fato de Dilma adotar políticas como restrição de pensões, diminuição do abono salarial e outras políticas de austeridade fiscal, o que alienou sua base eleitoral sem conquistar os setores que exigiam essas medidas (o mercado e a mídia). Não discordo que essas medias tenham um peso, mas não acredito que sejam o principal fator.

    50,6% das pessoas achavam que a corrupção era o maior desafio do governo na pesquisa de março de 2015 da CNT/MDA, e apenas 29,3% que era a economia, apesar de a maioria achar que a economia ia mal e ia piorar. Isso porque para 63,9% dos pesquisados a corrupção era causa dos problemas econômicos e a melhor solução para a crise econômica era promover a reforma política para 43,8%. Podemos deduzir que as pessoas sabiam que o país estava em uma crise, que o ajuste seria feito nos mais pobres, mas identificavam a corrupção como o causa central e a reforma política como saída.

    Nessa época a Lava-Jato fazia operações espetaculares regularmente, com uma cobertura midiática que colocava toda a culpa no PT. Na página 86 da pesquisa Datafolha de fevereiro de 2015 é possível ver como a corrupção sai do 8º lugar como principal problema do Brasil no início do primeiro mandato de Dilma para 2º lugar no início do segundo. É interessante perceber que durante o “Mensalão” a corrupção nunca conseguiu essa importância, porque o maior problema era o desemprego. A medida que o desemprego vai perdendo importância, a saúde se impõe como maior problema ao longo do segundo mandato de Lula e do primeiro de Dilma. Todos fatores ligados diretamente à vida material das pessoas. Porém, com a Lava-Jato ocorre algo diferente, cuja gênese está em julho de 2013: a corrupção passa a ser vista como um problema cada vez mais grave.

    Conclusão

    A minha hipótese de trabalho é que a experiência da classe média ir às ruas em 2013 provocou uma mudança profunda na sociedade, que passou a dar mais valor para a avaliação moral, ou moralista, se preferir, e menos para a avaliação econômica. É importante lembrar que o moralismo é um elemento importante para a construção do fascismo, e que discriminações como o racismo, machismo e LGBTQIAfobia também se baseiam em discursos morais. Nesse novo cenário, a esquerda manteve um discurso econômico, enquanto o bolsonarismo fez campanhas essencialmente morais. Enquanto a esquerda debate as vantagens que o eleitor receberá, a direita debate porque o seu eleitor é melhor. E, como podemos ver pelos resultados eleitorais, a abordagem moralista continua sendo eficaz.

  • O Capitalismo é Mau

    Frederich Engels criou o termo “assassinato social” para descrever as mortes causadas por condições econômicas e sociais que poderiam ser facilmente evitadas, mas não são. Gosto mais da expressão do que de “necropolítica”, porque deixa claro que há um ator, um responsável. Assassinatos possuem culpados. E, com certeza, esse post existe por causa do assassinato do CEO de plano de saúde nos EUA.

    “Quando um indivíduo ocasiona danos físicos a outro, resultando em morte, chamamos o ato de homicídio culposo; quando o agressor sabe de antemão que o ferimento será fatal, chamamos de assassinato. Mas quando a sociedade coloca centenas de proletários em tal posição de modo que eles inevitavelmente se deparem com uma morte muito precoce e não natural, uma morte que é tão violenta quanto aquela ocasionada por uma espada ou bala; quando priva milhares do essencial para a vida, coloca-os em condições em que não podem viver — obriga-os, através do forte poder da lei, a permanecer em tais condições até que a morte vença, feito consequência inevitável — ou seja, quando ela sabe que esses milhares de vítimas vão perecer e, ainda assim, permite que permaneçam nessas condições, então sua intenção é a de assassinar, assim como quando um indivíduo sozinho comete assassinato; mas torna-se um homicídio disfarçado, malicioso, um homicídio contra o qual ninguém se pode defender, que não parece o que é, porque ninguém vê o assassino, porque a morte da vítima parece natural, pois o crime é mais por omissão do que por cometimento. Mas não deixa de ser assassinato”. — Friedrich Engels, “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”

    Uma das críticas mais comuns às revoluções socialistas é o moralismo pacifista. “Como os bolcheviques puderam assassinar a família dos Czares. Mulheres e crianças!”. Esse tipo de crítica comove apenas pela distância, como podemos ver pela falta de empatia pelo CEO. Assim como o plano de saúde é responsável por inúmeras mortes ao negar tratamentos, a família do Czar era responsável por inúmeras mortes em uma guerra que nem fazia sentido para o povo russo. Mas esse moralismo não sobrevive a dois minutos de observação da realidade do assassinato social que ocorre todos os dias.

    Porém, se o povo consegue identificar claramente que essas pessoas são assassinas, como elas mesmas conseguem continuar executando suas tarefas em uma máquina assassina de condenar pessoas à morte? Como é possível que uma série de executivos, analistas e consultores continuem executando tarefas cuja consequência é a morte?

    Esse problema chocou o mundo quando os campos de extermínio foram descobertos na Segunda Guerra. Algumas das melhores explicações são as de Adorno, que falam sobre a existência de uma “razão instrumental” que é capaz de elaborar complexos mecanismos de terror, mas incapaz de refletir sobre as consequências éticas das suas ações, e Arendt, que falam sobre um mal banal, que é executado por pessoas que não pensam sobre o que fazem.

    O choque europeu com o nazismo espantou muito Aimé Césaire. Nascido em uma colônia europeia, foi cirúrgico ao falar que a única novidade do nazismo foi aplicar na metrópole, o que as metrópoles praticavam nas colônias. A indignação ocidental com a violência contra os seus tem ares de hipocrisia, porque das cruzadas ao genocídio palestino em curso, o que os seus fazem é potencializar o mal com toda a razão instrumental disponível e o aplicar do modo mais banal possível.

    O que espanta no texto de Engels, muito anterior a toda essa discussão, é como ele é capaz de perceber que o capitalismo não usa sua razão apenas para matar por ação, mas também pela omissão. Que o capitalismo usa de sua razão instrumental para criar, com a maior banalidade, condições que resultam na miséria e morte. Reformas trabalhistas, corte de aposentadorias, falta de manutenção em barragens de mineração, privatização da saúde, grilagem de terras, especulação imobiliária, evasão fiscal, desemprego… São todas condições que fabricam a morte dos trabalhadores, mas de um modo mais indireto que os policiais atirando em crianças de quatro anos da periferia ou atirando pessoas de pontes. A lógica capitalista, de aumentar os lucros e reduzir os custos, é a própria razão instrumental, que vai ceifando vidas em nome de pagar cada vez menos e cobrar cada vez mais, aplicada sem a menor reflexão ética sobre as suas consequências.

    A falta de consciência, a banalidade do mal, não é desculpa. Como diz Samir Machado de Machado, o único bom nazista é o nazista morto. Mas seguir essa lógica cristalina nos obriga a defender que o único CEO bom é o CEO morto. O único colonizador bom é o colonizador morto. O único grileiro bom é o grileiro morto. É essa lógica cristalina que explica o assassinato do Czar e de todos que poderiam herdar o título. Essa é a lógica dos comunistas que escandaliza quem fecha os olhos ao assassinato social de milhões de pessoas para se indignar com a revolta dos oprimidos.

  • Como o neoliberalismo matou a democracia

    É lugar comum se debruçar sobre os motivos que levaram a democracia burguesa ao impasse em que se encontra hoje e as possíveis explicações elencadas são as mais diversas. Como o fenômeno complexo que é, que se manifesta em cada país de modo ligeiramente diferente, é difícil sustentar um motivo central, como o título deste ensaio sugere, mas este é o desafio que buscamos confrontar, defendendo a centralidade do neoliberalismo, este conjunto complexo de política, economia e ideologia, nesta transformação. Além da centralidade, disputamos o marco temporal. A democracia não “está ameaçada”, ela já morreu, afinal:

    Em última instância, democracia é ter um estado que atenda os interesses do povo

    Os comentaristas políticos já usaram a expressão “crise de representatividade” à exaustão, mas são incapazes de explicar o que ela é e qual sua origem, porque isto deixaria o rei nu. As instituições de poder da democracia tem tido seu poder reduzido nas últimas década para garantir um objetivo central: a supremacia do capital financeiro, ou do “mercado”, como a mídia chama. Para garantir que os interesses dos capitalistas financeiros, que operam nas bolsas e ganham, dinheiro com o rentismo não sejam confrontados o neoliberalismo é, politicamente, um sistema que coloca para fora do debate democrático a discussão sobre o sistema econômico. Há vários exemplos na história recente do Brasil do mercado chantagear o governo para garantir seus interesses, mas focando no mais emblemático, a independência do Banco Central é uma mensagem que diz claramente “a macroeconomia não é matéria de discussão democrática”.

    Atender os interesses dessa pequena elite de super-ricos do mercado financeiro faz com que sejam eles que controlem elementos chave da economia brasileira: qual a taxa de juros, qual a estrutura tributária, quanto dinheiro o governo tem para implementar políticas públicas e fazer investimentos. Apenas esses super-ricos vivem em uma democracia, em que eles tem status de povo e o direito de ter seus interesses atendidos pelo governo. O resto, a quase totalidade do mundo, vive em uma cidadania de segunda classe, numa semi-democracia.

    “TINA” reduz o limite do possível

    A pedra fulcral do neoliberalismo enquanto agenda política se apresenta no slogan de Margareth Tatcher: “TINA, There is no alternative”, ou “não há alternativa”, porém essa também é a pedra tumular da política, porque se não há alternativa, a política se resume a pequenos ajustes em um destino que não está mais aberto à discussão.

    A operação discursiva desse slogan é apresentar uma afirmação ideológica, de que a economia liberal controlada pelos mercados financeiros é o a única alternativa para a sociedade, como uma verdade científica indiscutível e auto evidente. Ao mascarar uma opção política como verdade científica, a partir do discurso de economistas, o neoliberalismo justifica sua exclusão da política, uma vez que as verdades científicas, como a lei da gravidade ou a teoria da evolução não estão, ou não deveriam estar, abertas a discordâncias políticas.

    A consequência deste slogan ter sido aceito como verdade no neoliberalismo é a redução dos limites do que é percebido como possível. Mesmo diante de exemplos que provam a falsidade do slogan, como a elevação do padrão de vida na China, os ideólogos continuam afirmando que é impossível qualquer coisa além de pequenas melhorias incrementais da situação atual, porque senão os chantagistas do mercado, que são eles mesmos, vão implodir o país. Uma ferramenta argumentativa usada à exaustão é afirmar que o sucesso econômico da China se deve ao autoritarismo, e não a não seguir as políticas neoliberais.

    A despersonalização do mercado recria a aristocracia

    Então chegamos ao último elemento da operação ideológica: como esses chantagistas são convertidos em forças impessoais da economia, e não em pessoas com nome, endereço e interesses, eles nunca são responsabilizados, moral ou politicamente, por suas ações. A opção de condenar milhões à miséria para ganhar mais milhões que não precisa nunca é individualizada e condenada, mas sempre um movimento de forças impessoais.

    Existir uma categoria de pessoas acima da responsabilidade política é uma das características do antigo regime, da monarquia. Algo incompatível com a democracia. Mas o que podemos ver no jornalismo econômico, ou nas pesquisas de opinião apenas entre os operadores do mercado é exatamente a despersonalização, a aceitação automática de tudo que estes atores fazem como correto e válido.

    O “mercado” é uma elite que paira acima da democracia, que não precisa se preocupar com as consequências das suas ações e posições. Eles controlam o estado, que existe para servi-los, e não para o bem geral. Em resumo, uma aristocracia.

    Em resumo

    A “crise de representatividade” da democracia é uma consequência direta da política neoliberal que, por um lado retira enormes parcelas do poder das instâncias democráticas, e entrega para uma casta de parasitas e, por outro, naturaliza esta condição, defendendo que é impossível ter um sistema democrático que não seja essa farsa semifeudal. A democracia está em crise, porque é impossível sustentar a importância de instituições que são, em grande medida, decorativas.

    Para que a democracia tenha valor, ela precisa ter o poder de atender as demandas do povo, mas isso é o exato oposto do que as instituições neoliberais propõe.

    P.S.:

    Entender que a democracia já morreu no neoliberalismo é entender também que o papel da esquerda não pode ser defender a democracia, mas construí-la. E sua construção só é possível enfrentando o mercado.

  • Precisamos reaprender a sonhar

    Precisamos reaprender a sonhar

    Sobre sonhos e utopias

    Neste artigo usamos o jargão1 de Ernst Bloch, um filósofo alemão que dedicou sua vida a estudar a utopia. Para Bloch a palavra “utopia” tem um significado bastante diferente do sentido que ela costuma ter em círculos comunistas. Para ele, o comunismo científico é uma utopia, enquanto o comunismo utópico está mais próximo de um sonho. Sua obra traça uma progressão de organização e desenvolvimento que começa com a imaginação do futuro em que projetamos nossos desejos até os movimentos políticos organizados que buscam materializar esses desejos. Esse último estágio, um ideário coerente, organizado, vinculado a um movimento político que atua na realidade para se materializar, esse é a útopia para Bloch.

    O papel da imaginação na política

    Não é fácil sonhar. O adágio do Realismo Capitalista de Mark Fisher, de que é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo é dolorosamente real. Há muitos motivos para isso. O “fracasso”2 da experiência soviética, o fato da democracia liberal ter se consolidado como modo de governo compulsório, a rejeição da experiência chinesa não ser uma democracia liberal… Tudo isso são empecilhos para imaginarmos um futuro socialista, o que tem influência na atuação política cotidiana. De certo modo, abdicamos de propor o que é essa sociedade socialista que defendemos, porque não há modelos que consideremos aceitáveis, e tentar replicar modelos é simplesmente errado. Nenhum modelo se encaixa em uma sociedade, porque cada sociedade tem suas peculiaridades históricas.

    Mas ao não apresentar o que desejamos a longo prazo estamos dizendo, quando tentamos recrutar alguém para nossas fileiras, “Entre no carro! No caminho te conto o destino!”. Mas, já dizia Lênin, a revolução não é um carro e sim um trem. Todos sabem em qual estação do trem querem descer, antes de entrar nele. A ação política se baseia, antes de mais nada em um desejo. É orientada a um resultado ou, como Bloch chama, é “consequente”.

    Sem uma imaginação capaz de produzir uma imagem de futuro, não existe chance de convencer ninguém a entrar nesse trem. Mas essa imagem não é o caminho, a ação política cotidiana das lutas de cada semana, essa imagem não é um plano detalhado com um passo a passo de 50 anos, essa imagem sequer é a descrição de um mundo de ficção científica. Isso é querer pular etapas. São elementos de uma utopia a ser construída mais adiante. A imagem é exatamente isso, uma visão, não muito clara, no lusco fusco do horizonte, cheia de poesia e sedução: um idílio3.

    A situação paradoxal do comunismo no século XXI é que temos a utopia – desenvolvida, complexa, pensada e consequente – mas perdemos o idílio – incipiente, poético, sedutor e desvairado. O que falta aos partidos de esquerda não são planos e projetos, mas sonhos. Isso explica porque os jovens são tão seduzidos por grupos radicais, que se prendem ao sonho e se recusam a elaborar utopias a partir dele. E porque os grupos da utopia sem sonhos tem dificuldade de se renovar. O ciclo que Bloch descreve, em que o sonho alimenta a utopia, que por usa vez o realiza, está quebrado. Os sonhos não se desenvolvem em utopias consequentes, e as utopias consequentes não se sustentam mais em sonhos.

    Isso nos obriga a nos perguntarmos:

    Com o que sonhamos?

    Com produtos e serviços da sociedade de consumo4. Com um novo celular, um novo carro, uma nova viagem. Quase ninguém sonha com serviços públicos, com creche ou ônibus gratuito. A promessa de churrasco de picanha é muito mais sedutora que a promessa de um “SUS Forte”. O que os serviços públicos podem oferecer, em termos de sonhos capazes de serem vendidos pela publicidade individualista não é a si mesmo, mas suas consequências. O tempo livre que a creche proporciona, a segurança que um SUS dá.

    Mas essa estratégia de publicidade, embora possa ajudar nas disputas políticas imediatas, não muda o status quo. Não muda que os sonhos são todos de realização pessoal em uma sociedade competitiva, o que é a essência da ideologia neoliberal. Nenhum desses serviços públicos, vendidos com as estratégias neoliberais, nos aproxima de conseguir atrair à nossa utopia. É preciso mudar o próprio modo como sonhamos. Os sonhos, Bloch afirma, satisfazem nossas necessidade e desejos, então, se queremos resgatar sonhos que levem ao socialismo, só podemos fazer isso a partir das necessidades não podem ser atendidas pela sociedade de consumo.

    Isso tudo está absurdamente teórico!

    Tentando construir um exemplo para que essa divagação possa fazer um pouco mais de sentido, talvez quem possa mais nos ajudar seja Weber. Como humanos, precisamos não só satisfazer nossas necessidades materiais, mas também sentir que nossa vida tem justificativa, tem sentido. Precisamos nos sentir validados e apreciados por nós mesmos e nossos pares5. Como a sociedade de consumo destruiu as comunidades, nos resta formar grupos de consumidores do mesmo produto, seja café esnobe, série de TV, influencer, ou mesmo tentar virar produto a ser consumido, como ocorre com os próprios influencers. Ambos substitutos fracos, que nunca satisfazem nossa necessidade de comunidade, porque comunidade não é mediada pelo mercado.

    Mas podemos imaginar comunidades…

    Uma vida social, comunitária, construída fora do mercado, pode ser imaginada. Mas há um risco aqui. Essa é a mesma oferta que o fascismo faz: “um retorno6 ao tempo em que existiam laços sociais e comunitários” (apenas entre os iguais e sustentados pela exploração e exclusão dos desiguais). A imagem projetada dessas comunidades precisa ser inclusiva, aberta, acolhedora, solidária e livre de preconceitos. Não é qualquer comunidade. Não pode ser uma reedição das comunidades anteriores.

    Essa imagem de uma vida comunitária forte, inclusiva a solidária é o sonho, o idílio. Oferece a sedução que motiva as pessoas. Mas ela precisa se elaborar em utopia política consequente. Precisa se elaborar em planos de como materializar esse sonho e o transformar em novo normal.

    Praças? Cozinhas comunitárias? Mobilização social a partir dos CRAS? Várias possibilidades.

    O sonho sem uma utopia não tem consequência e não se materializa, mas o movimento político sem sonho não seduz e não engaja. Hoje em dia pensamos muito em termos de políticas públicas, com objetivos muito factuais. Somos bons nisso. Talvez o que precisemos seja começarmos a pensar políticas públicas tentando materializar sonhos. Não qualquer um, mas sonhos fora do mercado. Ao materializar esses sonhos, ao difundir imagens de uma sociedade que se realiza fora do capitalismo, estamos um passo mais parto de voltar a imaginar uma sociedade socialista.

  • Bolsonaro e o Kitman

    Na teologia muçulmana há um conceito interessante: o kitman. É a pessoa que defende um regime, mesmo tendo críticas a ele. Surgiu por conta de perseguições religiosas, da necessidade de manter a crença secreta, enquanto fingia outra. Em 1953, Czesław Miłosz se apropriou do termo para falar dos intelectuais poloneses que defendiam a dominação soviética do país. Não vejo termo melhor para falar de alguns dos apoiadores do governo Bolsonaro.

    Claro, Bolsonaro tem um núcleo duro de apoio formado por fascistas-preconceituosos-homomísicos7-etc. Mas tem um grupo infinitamente maior de kitmans, que guardam crenças contraditórias e dissimulam suas críticas.

    São as pessoas que apoiam um governo corrupto e ineficiente por conta da promessa de uma economia liberal, as que apoiam um governo violento e autoritário por conta da promessa de um espaço maior da religião na política, os que apoiam um governo criminoso, ligado à máfia8 por conta da promessa de garantir a segurança. Essas pessoas não concordam com a primeira parte da oração, mas guardam para si esta discordância por conta da segunda.

    Miłosz, falava de um contexto autoritário, em que o Estado perseguia dissidentes, e as pessoas concordavam pelo medo de represálias. Um contexto em que temos mais facilidade de perdoar, porque as orações eram “Eu não concordo com a censura, mas não posso perder meu emprego”. No Brasil de hoje, os kitman não precisam sequer dessa ameaça dura. Claro, há um mal estar de ser considerado um traidor, e o bolsonarismo, como bom totalitarismo em formação, quer sempre perseguir aqueles que não são dedicados o bastante à causa. (O que explica os conflitos internos entre os doidos olavistas e os setores mais racionais, mas isso é tema para outro post)

    Essa diferença de contexto é importante, porque enquanto o que justifica o silêncio do kitman tradicional é o medo, a insegurança, é bem pouco difícil achar explicações que não a hipocrisia e o egoísmo para estes apoiadores parciais de Bolsonaro.

    Então, salientar, denunciar estas contradições nos ajuda a reduzir o apoio desses grupos. Mostrar os pés de barro do santo. Mas se esses apoiadores embarcam no duplipensar9 por interesses, e não por medo, é muito pequena a chance de que façam uma autocrítica deste embarque. Atacar o kitman provavelmente vai fazer com que aprofunde seu apoio. Atacar a contradição pode tornar essa contradição insustentável.

  • Contribuições para o debate sobre a criação de uma esquerda pós-socialismo

    Como podem imaginar, não sou a favor da construção de um pós socialismo. Está no nome o blog. Mas vamos aos argumentos.

    A esquerda antes do socialismo científico

    A esquerda na verdade é mais velha que o socialismo utópico, e o utópico é mais antigo que o socialismo científico. O ponto central é que o pensamento marxiano conseguiu conquistar hegemonia dentro da esquerda a ponto de ser difícil pensar em uma esquerda que não leia Marx. É bom entender como Marx chegou nesse nível, mas também perceber que sempre houve e ainda há uma grande parcela da esquerda não marxista.

    A esquerda nasce com os Jacobinos, durante a revolução francesa, e podemos classificar como um movimento que busca melhores condições de vida para a população. No contexto da revolução isso significava principalmente garantir o preço do pão, e a estratégia era o tabelamento. Faltava uma compreensão da estrutura econômica que fazia o trigo ser caro e a capacidade de transformar essa estrutura. Por isso baixavam decretos e usavam as armas para garantir que os cumprissem.

    O socialismo não nasce na revolução francesa, mas dentro do cristianismo, com pensadores que buscam uma comunidade igualitária em que a riqueza seja compartilhada. A igreja persegue essas ideias e há uma aproximação dessas ideias cristãs com os revolucionários franceses, de onde nasce a Comuna de Paris. Estes pensadores e mesmo a Comuna tem dificuldade em concretizar seus planos e em apresentar um modo de transição para o comunismo, por isso são chamados de Utópicos por Marx.

    O que Marx oferece é uma estrutura

    Utópicos ganha um sentido meio pejorativo, porque Marx entende que eles não serão capazes de materializar seus sonhos, porque falta compreender como fazer isto. Marx tenta antes de mais nada compreender o capitalismo, suas entranhas, para propor um meio de o superar. Essa estrutura que ele usa para compreender a economia, a política e a sociedade é tão completa e explicava tão bem os fenômenos da sua época que se tornou quase irrefutável.Isso levou a dois fenômenos interessantes no século XX:

    • A esquerda se confundiu com o socialismo científico marxista
    • A esquerda teve dificuldade em atualizar o pensamento marxiano

    É incrível que as revoluções bem sucedidas, como russa e chinesa tenham sido guiadas por pessoas que atualizaram Marx e adaptaram a estrutura dele à realidade concreta de suas revoluções, e ao mesmo tempo tenha havido um engessamento desse pensamento, como se o marxismo fosse uma espécie de religião. Vivemos sob a sombra dessa percepção, de que toda esquerda é marxista e que o marxismo é um pensamento imóvel, mas essa sombra é falsa.

    A criação do que já existe

    Mas o fato é que a partir dos anos 80 tivemos um crescimento cada vez maior de uma esquerda que não se filia ao socialismo científico. Que se filia aos valores originais da esquerda de igualdade e bem estar, mas rejeita ou simplesmente desconhecem a estrutura que Marx oferece para lidar com estes problemas. Essa esquerda se filia, em sua maioria a dois movimentos, a New Left (Nova Esquerda) e à proposta de uma 3ª Via entre capitalismo e socialismo. Como aliás, já disse aqui, grande parte da esquerda não tem no seu centro a contradição entre Capital e Trabalho, que é o núcleo do pensamento marxiano, mas uma proposta de justiça social. A ideia que toda a esquerda é socialista é um espantalho10 que a extrema direita tem utilizado.

    Que críticas cabem à esquerda não socialista?

    A maior crítica é que o pós-socialismo está muito próximo do pré-socialismo e suas utopias não realizáveis. A 3ª Via propõe algo muito próximo da Social Democracia11, na medida em que mantém uma economia capitalista mas defende um governo de esquerda que atue para neutralizar os problemas que o capitalismo gera. A diferença na prática12 é que a 3ª Via nasceu após o neoliberalismo e aceita uma economia financeira neoliberal enquanto a social democracia tem uma noção mais antiga de setor público e vai defender não apenas que o estado conserte os problemas que o capitalismo causa, mas que ele interfira na economia para reduzir esses problemas, com algumas vertentes defendendo inclusive a transição para o socialismo.

    A Nova Esquerda, se concentra em outras pautas, que não a economia e a contradição Capital/Trabalho. Pautas como direitos de minorias, igualdade de gênero, ambientalismo, etc. Essas pautas, como o movimento não se debruça sobre a economia, seriam também alcançáveis dentro do sistema capitalista. Por isso, embora seja algo diferente da 3ª Via, a Nova Esquerda conseguiu expressão politica nos EUA a partir do partido Democrata, que é de 3ª Via, fazendo com que exista uma grande sobreposição entre estes dois movimentos.

    O problema dessas abordagens é que elas podem ser descritas como enxugar gelo. O Estado precisa corrigir as desigualdades geradas pelo capitalismo, mas sem superar o capitalismo, que causa essas desigualdades. Como os Jacobinos busca corrigir o problema atuando pela sua manifestação final, em vez de sobre suas causas. Falta uma estrutura operável que permita compreender e planejar a superação definitiva dos problemas sociais.

    Os desencontros entre economia e política em Lula e Dilma

    Em um episódio recente do podcast Transe, Tatiana Roque aponta erros na política econômica recente que atribui a visões ultrapassadas sobre produção e trabalho, associando essas visões ao socialismo. Sua análise sobre o fracasso econômico da construção de uma nova matriz econômica é certeira. O governo baseou suas ações na contradição entre um capitalismo produtivo vs. um capitalismo rentista, ignorando que são os mesmos capitalistas a operar na economia real e na especulação. Contrapôs essa política ao impulso econômico gerado pela transferência de renda e apresentou como hipótese de explicação para essa aposta errada um fetiche pela figura do trabalhador, central no sistema simbólico do socialismo.

    Lênin já apontava no Imperialismo (1916)  que a burguesia financeira não é nada mais que a burguesia produtiva em outro ambiente, mas não vejo falha no diagnóstico de Roque, porque na esquerda brasileira essa separação tem sido moeda corrente há décadas. Tenho a impressão que essa oposição vem, não do socialismo, apesar de ter sido abraçada por ele, mas de uma leitura rasa de Keynes e de uma busca atrapalhada de reviver um nacional desenvolvimentismo que teve sua era de ouro no país durante ditaduras como a de Vargas ou a Militar. Essa crença de uma possível aliança entre trabalhadores e burguesia produtiva contra a burguesia financeira é um ponto em que precisamos fazer uma profunda reflexão e autocrítica. Mas essa crítica não vai, necessariamente, no sentido de um abandono do socialismo, até porque dentro do pensamento socialista o apoio ao “capital produtivo é algo marginal, e não central.

    O problema estrutural que essa aliança Capital/Trabalho procurava resolver

    O Brasil possui um deficit fiscal estrutural: desde sempre o governo gasta mais do que arrecada. Ao mesmo tempo possui serviços públicos que precisam de investimentos gigantescos para atingir a qualidade que queremos. Isso acontece porque apesar de termos uma carga tributária razoável, nossa economia é pequena quando comparada com nossa população. Temos uma economia pouco maior que a do Reino Unido, com uma população mais de três vezes maior. Isso quer dizer que, se a carga tributária fosse a mesma nos dois países, o valor que o governo teria pra gastar com serviços públicos seria mais de três vezes menor no Brasil que no Reino Unido, o que gera serviços piores. Essa aliança buscava fazer a economia crescer, para gerar mais impostos, para investir em serviços públicos melhores. Boa parte dos problemas do Brasil giram em torno do crescimento.

    O que Roque nos aponta é que tivemos uma experiência de crescimento melhor com transferência de renda, que gera consumo, aumentando a demanda, que com incentivos para as empresas. Essa se encaixa na estrutura econômica descrita por Keynes, em que o crescimento econômico global é movido pela demanda agregada, e não pela oferta. Mas ela ponta também que o perfil desse crescimento foi “ruim”, dentro da lógica do fetiche pelo trabalho industrial, porque se concentrou no setor de serviços.

    O problema é que o Brasil tinha alcançado uma situação de pleno emprego, precisando exatamente mudar o perfil da sua economia, agregando valor, para conseguir aumentar seu tamanho. Há exemplos dessa aliança funcionando na Coreia do Sul, durante sua ditadura, no Japão, durante a ocupação americana13 e na China, que não é uma democracia liberal. O governo tentou materializar essa aliança, mas sem contar com o controle do Estado sobre a economia que esses países tinham, e falhou miseravelmente, porque o Brasil é uma democracia liberal. Precisaria ou abandonar a 3ª Via, institucionalizada desde FHC e reafirmada por Lula na Carta ao povo brasileiro e criar mecanismos de controle do Estado sobre a economia, para garantir que a burguesia seguisse o plano, ou operar através da demanda, como ocorreu com a nacionalização de fornecedores da Petrobrás ou Bolsa Família.

    Essas políticas não são exclusivas ou inerentes ao socialismo, apesar de serem o arroz com feijão a China hoje, são o passado do Japão e Coreia do Sul sob forte influência dos EUA. Foram levadas a cabo pelo setor de esquerda no Brasil, com o apoio de socialistas, mas na minha opinião, uma esquerda muito mais ligada à 3ª Via e a um saudosismo varguista que ao socialismo.

    As mobilização política e a subjetivação do trabalho

    Mas, para além da análise concreta, o podcast aborda uma discussão teórica importante, que é a decadência da imagem subjetiva do trabalhador diante da imagem subjetiva do empresário. Essa visão está ligada à subjetivação neoliberal do indivíduo como empresa e das relações humanas como relações principalmente econômicas14. Essa discussão não é, principalmente, sobre economia, mas sobre  política. A possibilidade de mobilização política de um movimento está ligada `oferta de uma subjetivação do sujeito que seja sedutora. A globalização colocou a subjetivação do trabalho em crise nos países de centro, porque exportou o trabalho industrial para países de periferia, o substituindo por trabalhos piores no setor de serviços, ao mesmo tempo em que o trabalho intelectual se proletarizou e tem sido cada vez mais superexplorado. São dilemas sérios que a esquerda precisa resolver, mas a situação no Brasil é um pouco diferente.

    No Brasil também há uma recusa do trabalho como salvador e uma aderência crescente à figura do empreendedor como subjetivação desejada. Mas há fatores locais tão ou mais importantes. O principal é que o ambiente e as relações de trabalho, principalmente os menos qualificados, são ambientes e relações de abuso. Isso começou a mudar quando atingimos, por pouco tempo, um pleno emprego e valorização do salário mínimo, mas já estamos retrocedendo de novo. Nossas relações de trabalho evoluíram muito pouco quando comparadas com a escravidão e a dependência/clientelismo aos coronéis rurais. Uma parte  central da subjetivação do empreendedor nos países de centro é o sucesso, materializada como riqueza, em nome do qual os empreendedores se submetem a cargas de trabalho desumanas. No Brasil ficar rico é acessório. O cerne é a libertação da relação hierárquica do emprego. O peso da autonomia na subjetivação do empreendedor nacional vem da naturalização e constância do abuso no ambiente de trabalho.

    Paul Singer oferece uma perspectiva da história do socialismo diferente da do início do post no livro Uma Utopia Militante. Defende não uma história política/ideológica que nasce com pensadores cristãos e Revolução Francesa, mas econômica, que nasce nas experiências de coletivismo econômico na Inglaterra. O empreendedor coletivo  ou social, em arranjos cooperativos de produção, é uma possibilidade interessante de repaginação das relações e da subjetivação do trabalho. Faltam formas jurídicas que consigam englobar essas formas de organização e falta uma organização conceitual do que seria o empreendimento coletivo hoje, mas com certeza seria uma alternativa à precarizações como o uber ou airbnb, empoderando seus cooperados, em vez de uma empresa de administração do trabalho alheio.