Bolsonaro e o Kitman

Na teologia muçulmana há um conceito interessante: o kitman. É a pessoa que defende um regime, mesmo tendo críticas a ele. Surgiu por conta de perseguições religiosas, da necessidade de manter a crença secreta, enquanto fingia outra. Em 1953, Czesław Miłosz se apropriou do termo para falar dos intelectuais poloneses que defendiam a dominação soviética do país. Não vejo termo melhor para falar de alguns dos apoiadores do governo Bolsonaro.

Claro, Bolsonaro tem um núcleo duro de apoio formado por fascistas-preconceituosos-homomísicos1-etc. Mas tem um grupo infinitamente maior de kitmans, que guardam crenças contraditórias e dissimulam suas críticas.

São as pessoas que apoiam um governo corrupto e ineficiente por conta da promessa de uma economia liberal, as que apoiam um governo violento e autoritário por conta da promessa de um espaço maior da religião na política, os que apoiam um governo criminoso, ligado à máfia2 por conta da promessa de garantir a segurança. Essas pessoas não concordam com a primeira parte da oração, mas guardam para si esta discordância por conta da segunda.

Miłosz, falava de um contexto autoritário, em que o Estado perseguia dissidentes, e as pessoas concordavam pelo medo de represálias. Um contexto em que temos mais facilidade de perdoar, porque as orações eram “Eu não concordo com a censura, mas não posso perder meu emprego”. No Brasil de hoje, os kitman não precisam sequer dessa ameaça dura. Claro, há um mal estar de ser considerado um traidor, e o bolsonarismo, como bom totalitarismo em formação, quer sempre perseguir aqueles que não são dedicados o bastante à causa. (O que explica os conflitos internos entre os doidos olavistas e os setores mais racionais, mas isso é tema para outro post)

Essa diferença de contexto é importante, porque enquanto o que justifica o silêncio do kitman tradicional é o medo, a insegurança, é bem pouco difícil achar explicações que não a hipocrisia e o egoísmo para estes apoiadores parciais de Bolsonaro.

Então, salientar, denunciar estas contradições nos ajuda a reduzir o apoio desses grupos. Mostrar os pés de barro do santo. Mas se esses apoiadores embarcam no duplipensar3 por interesses, e não por medo, é muito pequena a chance de que façam uma autocrítica deste embarque. Atacar o kitman provavelmente vai fazer com que aprofunde seu apoio. Atacar a contradição pode tornar essa contradição insustentável.

Notas

  1. Houve uma mudança importante no significado de homofobia na medida em que a palavra foi se popularizando. O que entendíamos como homofobia é chamado hoje de “masculinidade tóxica” e o que designamos como homofobia é apenas [ódio, por isso melhor usar o termo homomisia, já que -misia significa aversão, ódio, enquanto -fobia indica medo.
  2. Milícias são máfias. Mesmo modo de trabalho, mesmas atividades econômicas. Mesma organização.
  3. Manter duas crenças contraditórias na cabeça ao mesmo tempo. Como acreditar que um mafioso vai melhorar a segurança. Expressão criada por George Orwell no livro 1984.

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