Como podem imaginar, não sou a favor da construção de um pós socialismo. Está no nome o blog. Mas vamos aos argumentos.
A esquerda antes do socialismo científico
A esquerda na verdade é mais velha que o socialismo utópico, e o utópico é mais antigo que o socialismo científico. O ponto central é que o pensamento marxiano conseguiu conquistar hegemonia dentro da esquerda a ponto de ser difícil pensar em uma esquerda que não leia Marx. É bom entender como Marx chegou nesse nível, mas também perceber que sempre houve e ainda há uma grande parcela da esquerda não marxista.
A esquerda nasce com os Jacobinos, durante a revolução francesa, e podemos classificar como um movimento que busca melhores condições de vida para a população. No contexto da revolução isso significava principalmente garantir o preço do pão, e a estratégia era o tabelamento. Faltava uma compreensão da estrutura econômica que fazia o trigo ser caro e a capacidade de transformar essa estrutura. Por isso baixavam decretos e usavam as armas para garantir que os cumprissem.
O socialismo não nasce na revolução francesa, mas dentro do cristianismo, com pensadores que buscam uma comunidade igualitária em que a riqueza seja compartilhada. A igreja persegue essas ideias e há uma aproximação dessas ideias cristãs com os revolucionários franceses, de onde nasce a Comuna de Paris. Estes pensadores e mesmo a Comuna tem dificuldade em concretizar seus planos e em apresentar um modo de transição para o comunismo, por isso são chamados de Utópicos por Marx.
O que Marx oferece é uma estrutura
Utópicos ganha um sentido meio pejorativo, porque Marx entende que eles não serão capazes de materializar seus sonhos, porque falta compreender como fazer isto. Marx tenta antes de mais nada compreender o capitalismo, suas entranhas, para propor um meio de o superar. Essa estrutura que ele usa para compreender a economia, a política e a sociedade é tão completa e explicava tão bem os fenômenos da sua época que se tornou quase irrefutável.Isso levou a dois fenômenos interessantes no século XX:
- A esquerda se confundiu com o socialismo científico marxista
- A esquerda teve dificuldade em atualizar o pensamento marxiano
É incrível que as revoluções bem sucedidas, como russa e chinesa tenham sido guiadas por pessoas que atualizaram Marx e adaptaram a estrutura dele à realidade concreta de suas revoluções, e ao mesmo tempo tenha havido um engessamento desse pensamento, como se o marxismo fosse uma espécie de religião. Vivemos sob a sombra dessa percepção, de que toda esquerda é marxista e que o marxismo é um pensamento imóvel, mas essa sombra é falsa.
A criação do que já existe
Mas o fato é que a partir dos anos 80 tivemos um crescimento cada vez maior de uma esquerda que não se filia ao socialismo científico. Que se filia aos valores originais da esquerda de igualdade e bem estar, mas rejeita ou simplesmente desconhecem a estrutura que Marx oferece para lidar com estes problemas. Essa esquerda se filia, em sua maioria a dois movimentos, a New Left (Nova Esquerda) e à proposta de uma 3ª Via entre capitalismo e socialismo. Como aliás, já disse aqui, grande parte da esquerda não tem no seu centro a contradição entre Capital e Trabalho, que é o núcleo do pensamento marxiano, mas uma proposta de justiça social. A ideia que toda a esquerda é socialista é um espantalho1 que a extrema direita tem utilizado.
Que críticas cabem à esquerda não socialista?
A maior crítica é que o pós-socialismo está muito próximo do pré-socialismo e suas utopias não realizáveis. A 3ª Via propõe algo muito próximo da Social Democracia2, na medida em que mantém uma economia capitalista mas defende um governo de esquerda que atue para neutralizar os problemas que o capitalismo gera. A diferença na prática3 é que a 3ª Via nasceu após o neoliberalismo e aceita uma economia financeira neoliberal enquanto a social democracia tem uma noção mais antiga de setor público e vai defender não apenas que o estado conserte os problemas que o capitalismo causa, mas que ele interfira na economia para reduzir esses problemas, com algumas vertentes defendendo inclusive a transição para o socialismo.
A Nova Esquerda, se concentra em outras pautas, que não a economia e a contradição Capital/Trabalho. Pautas como direitos de minorias, igualdade de gênero, ambientalismo, etc. Essas pautas, como o movimento não se debruça sobre a economia, seriam também alcançáveis dentro do sistema capitalista. Por isso, embora seja algo diferente da 3ª Via, a Nova Esquerda conseguiu expressão politica nos EUA a partir do partido Democrata, que é de 3ª Via, fazendo com que exista uma grande sobreposição entre estes dois movimentos.
O problema dessas abordagens é que elas podem ser descritas como enxugar gelo. O Estado precisa corrigir as desigualdades geradas pelo capitalismo, mas sem superar o capitalismo, que causa essas desigualdades. Como os Jacobinos busca corrigir o problema atuando pela sua manifestação final, em vez de sobre suas causas. Falta uma estrutura operável que permita compreender e planejar a superação definitiva dos problemas sociais.
Os desencontros entre economia e política em Lula e Dilma
Em um episódio recente do podcast Transe, Tatiana Roque aponta erros na política econômica recente que atribui a visões ultrapassadas sobre produção e trabalho, associando essas visões ao socialismo. Sua análise sobre o fracasso econômico da construção de uma nova matriz econômica é certeira. O governo baseou suas ações na contradição entre um capitalismo produtivo vs. um capitalismo rentista, ignorando que são os mesmos capitalistas a operar na economia real e na especulação. Contrapôs essa política ao impulso econômico gerado pela transferência de renda e apresentou como hipótese de explicação para essa aposta errada um fetiche pela figura do trabalhador, central no sistema simbólico do socialismo.
Lênin já apontava no Imperialismo (1916) que a burguesia financeira não é nada mais que a burguesia produtiva em outro ambiente, mas não vejo falha no diagnóstico de Roque, porque na esquerda brasileira essa separação tem sido moeda corrente há décadas. Tenho a impressão que essa oposição vem, não do socialismo, apesar de ter sido abraçada por ele, mas de uma leitura rasa de Keynes e de uma busca atrapalhada de reviver um nacional desenvolvimentismo que teve sua era de ouro no país durante ditaduras como a de Vargas ou a Militar. Essa crença de uma possível aliança entre trabalhadores e burguesia produtiva contra a burguesia financeira é um ponto em que precisamos fazer uma profunda reflexão e autocrítica. Mas essa crítica não vai, necessariamente, no sentido de um abandono do socialismo, até porque dentro do pensamento socialista o apoio ao “capital produtivo” é algo marginal, e não central.
O problema estrutural que essa aliança Capital/Trabalho procurava resolver
O Brasil possui um deficit fiscal estrutural: desde sempre o governo gasta mais do que arrecada. Ao mesmo tempo possui serviços públicos que precisam de investimentos gigantescos para atingir a qualidade que queremos. Isso acontece porque apesar de termos uma carga tributária razoável, nossa economia é pequena quando comparada com nossa população. Temos uma economia pouco maior que a do Reino Unido, com uma população mais de três vezes maior. Isso quer dizer que, se a carga tributária fosse a mesma nos dois países, o valor que o governo teria pra gastar com serviços públicos seria mais de três vezes menor no Brasil que no Reino Unido, o que gera serviços piores. Essa aliança buscava fazer a economia crescer, para gerar mais impostos, para investir em serviços públicos melhores. Boa parte dos problemas do Brasil giram em torno do crescimento.
O que Roque nos aponta é que tivemos uma experiência de crescimento melhor com transferência de renda, que gera consumo, aumentando a demanda, que com incentivos para as empresas. Essa se encaixa na estrutura econômica descrita por Keynes, em que o crescimento econômico global é movido pela demanda agregada, e não pela oferta. Mas ela ponta também que o perfil desse crescimento foi “ruim”, dentro da lógica do fetiche pelo trabalho industrial, porque se concentrou no setor de serviços.
O problema é que o Brasil tinha alcançado uma situação de pleno emprego, precisando exatamente mudar o perfil da sua economia, agregando valor, para conseguir aumentar seu tamanho. Há exemplos dessa aliança funcionando na Coreia do Sul, durante sua ditadura, no Japão, durante a ocupação americana4 e na China, que não é uma democracia liberal. O governo tentou materializar essa aliança, mas sem contar com o controle do Estado sobre a economia que esses países tinham, e falhou miseravelmente, porque o Brasil é uma democracia liberal. Precisaria ou abandonar a 3ª Via, institucionalizada desde FHC e reafirmada por Lula na Carta ao povo brasileiro e criar mecanismos de controle do Estado sobre a economia, para garantir que a burguesia seguisse o plano, ou operar através da demanda, como ocorreu com a nacionalização de fornecedores da Petrobrás ou Bolsa Família.
Essas políticas não são exclusivas ou inerentes ao socialismo, apesar de serem o arroz com feijão a China hoje, são o passado do Japão e Coreia do Sul sob forte influência dos EUA. Foram levadas a cabo pelo setor de esquerda no Brasil, com o apoio de socialistas, mas na minha opinião, uma esquerda muito mais ligada à 3ª Via e a um saudosismo varguista que ao socialismo.
As mobilização política e a subjetivação do trabalho
Mas, para além da análise concreta, o podcast aborda uma discussão teórica importante, que é a decadência da imagem subjetiva do trabalhador diante da imagem subjetiva do empresário. Essa visão está ligada à subjetivação neoliberal do indivíduo como empresa e das relações humanas como relações principalmente econômicas5. Essa discussão não é, principalmente, sobre economia, mas sobre política. A possibilidade de mobilização política de um movimento está ligada `oferta de uma subjetivação do sujeito que seja sedutora. A globalização colocou a subjetivação do trabalho em crise nos países de centro, porque exportou o trabalho industrial para países de periferia, o substituindo por trabalhos piores no setor de serviços, ao mesmo tempo em que o trabalho intelectual se proletarizou e tem sido cada vez mais superexplorado. São dilemas sérios que a esquerda precisa resolver, mas a situação no Brasil é um pouco diferente.
No Brasil também há uma recusa do trabalho como salvador e uma aderência crescente à figura do empreendedor como subjetivação desejada. Mas há fatores locais tão ou mais importantes. O principal é que o ambiente e as relações de trabalho, principalmente os menos qualificados, são ambientes e relações de abuso. Isso começou a mudar quando atingimos, por pouco tempo, um pleno emprego e valorização do salário mínimo, mas já estamos retrocedendo de novo. Nossas relações de trabalho evoluíram muito pouco quando comparadas com a escravidão e a dependência/clientelismo aos coronéis rurais. Uma parte central da subjetivação do empreendedor nos países de centro é o sucesso, materializada como riqueza, em nome do qual os empreendedores se submetem a cargas de trabalho desumanas. No Brasil ficar rico é acessório. O cerne é a libertação da relação hierárquica do emprego. O peso da autonomia na subjetivação do empreendedor nacional vem da naturalização e constância do abuso no ambiente de trabalho.
Paul Singer oferece uma perspectiva da história do socialismo diferente da do início do post no livro Uma Utopia Militante. Defende não uma história política/ideológica que nasce com pensadores cristãos e Revolução Francesa, mas econômica, que nasce nas experiências de coletivismo econômico na Inglaterra. O empreendedor coletivo ou social, em arranjos cooperativos de produção, é uma possibilidade interessante de repaginação das relações e da subjetivação do trabalho. Faltam formas jurídicas que consigam englobar essas formas de organização e falta uma organização conceitual do que seria o empreendimento coletivo hoje, mas com certeza seria uma alternativa à precarizações como o uber ou airbnb, empoderando seus cooperados, em vez de uma empresa de administração do trabalho alheio.
Notas
- A Falácia do espantalho é a estratégia de em vez de responder ao argumento criar um argumento absurdo e responder a este argumento absurdo, fazendo o debate degringolar. Acusar toda pessoa de esquerda de comunista é o espantalho de criticar o comunismo em vez do que quer que seja que estão debatendo.
- Não confundir com PSDB que não tem mais nada de social democrata
- Elaborar todas as diferenças seria um tratado imenso.
- Além disso o Japão possui uma ética de trabalho muito diferente da ocidental, que facilita este processo
- Um ótimo livro sobre isso é
Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution (Desfazendo o Povo: A Revolução Silenciosa do Neoliberalismo de Wendy Brown