Existe uma discussão bizarra entre alguns comunistas sobre identidade e identitarismo que está colocada em termos completamente absurdos, então este texto volta às bases do materialismo histórico-dialético para definir melhor a identidade. A resposta? Uma ferramenta. Para todos os grupos que a utilizam. Acompanhe o raciocínio.
Para afastar qualquer dúvida sobre a possibilidade da identidade estar ligada à alguma essência imutável, a gente relembra que a base do materialismo é que existem as coisas, a matéria, a partir das quais construímos as nossas ideias. Jean Paul Sartre sintetiza essa relação com a expressão “os abstratos só existem concretamente”, bell hooks exemplifica com “o amor é uma ação”. Ou seja, nenhuma identidade tem uma existência autônoma. Existem ações humanas, concretas e singulares, que são agrupadas conceitualmente a partir do que tem em comum para formar identidades.
Repare que a existência condicional e subordinada dos abstratos é diferente de não existirem. Identidades existem e tem efeitos sobre a matéria e as consciências, portanto descartar a sua importância é a mais rematada burrice.
Ao mesmo tempo, o fato de serem categorias criadas pela humanidade nos leva a questionar sua relevância e investigar sua criação e destruição. Para o materialismo histórico-dialético tudo está em movimento e transformação, então nenhuma identidade pode ser assumida como permanente. Como era a identidade nacional no território brasileiro no tempo da colônia? Como isso mudou quando o Brasil se tornou a sede do império português? Como se fabricou a identidade brasileira após a independência? Estas perguntas, tão fáceis de fazer quanto às identidades nacionais, precisam ser feitas também quanto às identidades associadas a outras características, como sexo, cor de pele, descendência, entre outros.

A foto de infância de Franklin Roosevelt nos mostra que na formação econômico-social dos EUA em 1884, o modo de vestir das crianças não era uma performance de gênero, ao contrário de hoje. No processo histórico de selecionar quais características vão compor cada identidade existe um alto grau de arbitrariedade e liberdade, assim como na seleção de quais as identidades relevantes para a sociedade. Enquadrar as identidades nesta posição, de construções históricas, razoavelmente arbitrárias, nos permite parar de debater as identidades em si e fazer as perguntas realmente importantes: quem as constrói; com quais objetivos; quais seus efeitos? Com isso, mudamos nosso foco do discurso essencialista das identidades para como elas atuam em processos históricos.
A principal função social das identidades é aumentar a coesão de grupos sociais, ao ressaltar o que os indivíduos que os compõe tem de comum, enquanto minimizam o que tem de diferente e único. Quando Fred Hampton, do Partido Pantera Negra para Auto-Defesa organizava a Coalizão Arco-Íris, com pessoas pobres de várias origens, negras ou não, ele elegia a pobreza como um elemento de identidade. Quando T. R. M. Howard defendia o empoderamento negro através do empreendedorismo dentro do capitalismo, ele escolhe a cor de pele como um elemento de identidade. Essa aparente diferença é central para o argumento que critica o “identitarismo” como anti-revolucionário, mas é também o erro de tomar a parte pelo todo. O problema de Howard não é a identidade negra, mas ela ser mobilizada para reforçar o capitalismo, assim como o fato de Hamptom buscar alianças está longe de contradizer o fato da estruturação e organização dos Panteras Negras ocorria, primordialmente, a partir da identidade negra e a pobreza tinha um papel secundário.
A identidade é uma ferramenta de construção de coesão, cuja maior utilidade é mobilizar as pessoas. Mas mobilizar pessoas para que? Essa é a diferença entre Hampton e Howard. Não existe nada essencialmente anti-revolucionário na mobilização identitária. Existe uma escolha política sobre o objetivo que motiva a mobilização da identidade, que não é mais que uma ferramenta, podendo ser direcionada para o objetivo liberal do empreendedorismo e empoderamento individual, para o objetivo comunista da solidariedade e revolução ou ainda para o ódio racista e outros objetivos questionáveis.
George Devereux, acadêmico franco-húngaro de família judia com grande parte da carreira nos EUA, percebeu em seus estudos e sua vida que as pessoas possuem múltiplas identidades e que as manejam de modo estratégico. Ninguém é apenas brasileiro, homem, negro ou universitário, mas uma mistura de várias identidades, permitindo que os indivíduos escolham com quais se identificam. Esse é um processo complexo, que passa pela resistência a opressões, a necessidade de afirmar sua diferença da sociedade, a possibilidade de encontrar acolhimento entre seus pares, vantagens econômicas, etc. Assim como a identidade é uma ferramenta no nível social, ela é uma ferramenta no nível individual, apesar do seu uso estratégico quase nunca ser consciente. Se a identidade é uma ferramenta de coesão social, as pessoas só vão participar do grupo que ela constrói se perceber alguma vantagem, objetiva ou subjetiva.
Nesse sentido, vale a pena os críticos do identitarismo se perguntarem porque pessoas subalternizadas estão se identificando mais a partir de gênero, orientação sexual, cor e outras do que pela pobreza ou por serem assalariadas. O que essas identidades oferecem que as identidades associadas à consciência de classe, tradicionalmente manejadas pelos comunistas, não conseguem?
Qualquer identidade que agrupe pessoas subalternizadas na sociedade capitalista é uma oportunidade de alianças e de mobilização anticapitalista, exatamente porque a identidade não muda a realidade material da exploração, apenas reúne pessoas em torno do que tem em comum. Mas a hostilidade de setores da esquerda a movimentos que se organizam em torno destas identidades colabora para que essas alianças não ocorram. Essa hostilidade assume que a orientação liberal de alguns grupos identitários é uma característica inescapável de movimentos identitários, demonstrando um essencialismo incompatível com o materialismo histórico-dialético.

