É lugar comum se debruçar sobre os motivos que levaram a democracia burguesa ao impasse em que se encontra hoje e as possíveis explicações elencadas são as mais diversas. Como o fenômeno complexo que é, que se manifesta em cada país de modo ligeiramente diferente, é difícil sustentar um motivo central, como o título deste ensaio sugere, mas este é o desafio que buscamos confrontar, defendendo a centralidade do neoliberalismo, este conjunto complexo de política, economia e ideologia, nesta transformação. Além da centralidade, disputamos o marco temporal. A democracia não “está ameaçada”, ela já morreu, afinal:
Em última instância, democracia é ter um estado que atenda os interesses do povo
Os comentaristas políticos já usaram a expressão “crise de representatividade” à exaustão, mas são incapazes de explicar o que ela é e qual sua origem, porque isto deixaria o rei nu. As instituições de poder da democracia tem tido seu poder reduzido nas últimas década para garantir um objetivo central: a supremacia do capital financeiro, ou do “mercado”, como a mídia chama. Para garantir que os interesses dos capitalistas financeiros, que operam nas bolsas e ganham, dinheiro com o rentismo não sejam confrontados o neoliberalismo é, politicamente, um sistema que coloca para fora do debate democrático a discussão sobre o sistema econômico. Há vários exemplos na história recente do Brasil do mercado chantagear o governo para garantir seus interesses, mas focando no mais emblemático, a independência do Banco Central é uma mensagem que diz claramente “a macroeconomia não é matéria de discussão democrática”.
Atender os interesses dessa pequena elite de super-ricos do mercado financeiro faz com que sejam eles que controlem elementos chave da economia brasileira: qual a taxa de juros, qual a estrutura tributária, quanto dinheiro o governo tem para implementar políticas públicas e fazer investimentos. Apenas esses super-ricos vivem em uma democracia, em que eles tem status de povo e o direito de ter seus interesses atendidos pelo governo. O resto, a quase totalidade do mundo, vive em uma cidadania de segunda classe, numa semi-democracia.
“TINA” reduz o limite do possível
A pedra fulcral do neoliberalismo enquanto agenda política se apresenta no slogan de Margareth Tatcher: “TINA, There is no alternative”, ou “não há alternativa”, porém essa também é a pedra tumular da política, porque se não há alternativa, a política se resume a pequenos ajustes em um destino que não está mais aberto à discussão.
A operação discursiva desse slogan é apresentar uma afirmação ideológica, de que a economia liberal controlada pelos mercados financeiros é o a única alternativa para a sociedade, como uma verdade científica indiscutível e auto evidente. Ao mascarar uma opção política como verdade científica, a partir do discurso de economistas, o neoliberalismo justifica sua exclusão da política, uma vez que as verdades científicas, como a lei da gravidade ou a teoria da evolução não estão, ou não deveriam estar, abertas a discordâncias políticas.
A consequência deste slogan ter sido aceito como verdade no neoliberalismo é a redução dos limites do que é percebido como possível. Mesmo diante de exemplos que provam a falsidade do slogan, como a elevação do padrão de vida na China, os ideólogos continuam afirmando que é impossível qualquer coisa além de pequenas melhorias incrementais da situação atual, porque senão os chantagistas do mercado, que são eles mesmos, vão implodir o país. Uma ferramenta argumentativa usada à exaustão é afirmar que o sucesso econômico da China se deve ao autoritarismo, e não a não seguir as políticas neoliberais.
A despersonalização do mercado recria a aristocracia
Então chegamos ao último elemento da operação ideológica: como esses chantagistas são convertidos em forças impessoais da economia, e não em pessoas com nome, endereço e interesses, eles nunca são responsabilizados, moral ou politicamente, por suas ações. A opção de condenar milhões à miséria para ganhar mais milhões que não precisa nunca é individualizada e condenada, mas sempre um movimento de forças impessoais.
Existir uma categoria de pessoas acima da responsabilidade política é uma das características do antigo regime, da monarquia. Algo incompatível com a democracia. Mas o que podemos ver no jornalismo econômico, ou nas pesquisas de opinião apenas entre os operadores do mercado é exatamente a despersonalização, a aceitação automática de tudo que estes atores fazem como correto e válido.
O “mercado” é uma elite que paira acima da democracia, que não precisa se preocupar com as consequências das suas ações e posições. Eles controlam o estado, que existe para servi-los, e não para o bem geral. Em resumo, uma aristocracia.
Em resumo
A “crise de representatividade” da democracia é uma consequência direta da política neoliberal que, por um lado retira enormes parcelas do poder das instâncias democráticas, e entrega para uma casta de parasitas e, por outro, naturaliza esta condição, defendendo que é impossível ter um sistema democrático que não seja essa farsa semifeudal. A democracia está em crise, porque é impossível sustentar a importância de instituições que são, em grande medida, decorativas.
Para que a democracia tenha valor, ela precisa ter o poder de atender as demandas do povo, mas isso é o exato oposto do que as instituições neoliberais propõe.
P.S.:
Entender que a democracia já morreu no neoliberalismo é entender também que o papel da esquerda não pode ser defender a democracia, mas construí-la. E sua construção só é possível enfrentando o mercado.