Eu gosto de dizer que, sem 2013 não haveria 2016 e a estratégia petista de conciliação com o PMDB e outros partidos do Arenão, teria mais vários anos de sobrevida. Mas isso tem pouco a ver com as revoltas serem uma “revolução colorida” engendrada pela CIA ou uma armadilha da extrema-direita. Tem mais a ver com 2013 ser um terremoto, que mudou de lugar as placas tectônicas sobre as quais se assenta a política nacional.
Nuvens e placas tectônicas
Tancredo Neves dizia que a política é como as nuvens, cada vez que você olha vê algo diferente, para explicar a política de alianças móveis das oligarquias fisiocráticas das quais ele próprio fazia parte, que em vez de firmes posições ideológicas, mudava de lado para ser estar sempre perto do governo.
Mesmo ele estando certo, há outro movimento, mais profundo na política, cuja melhor metáfora são as placas tectônicas, que explica, por exemplo, a segunda eleição de Lula. Se o movimento dos agentes políticos são as nuvens, a movimentação do consenso popular são as placas tectônicas, que ocorre aos poucos e de modo imperceptível. Os analistas podem ver o resultado do movimento, mas não o movimento em si. André Singer defende que o Lulismo surgiu durante o primeiro mandato de Lula, e se através de uma mudança da sua base de apoio rumo à população mais pobre e se afastando das classes médias, que apoiavam o PT por conta de posições como o combate à corrupção e se desiludiu com as denúncias do “mensalão”. Isso seria um exemplo de movimento das placas tectônicas. Nesse sentido que 2013 é um terremoto. É uma mudança profunda do consenso popular, mas que ocorre em uma explosão, em vez de gradual e imperceptivelmente.
Mas o que mudou?
Essa é a grande questão, no fim das contas. O que mudou em 2013? A minha hipótese, um pouco abstrata é: o critério de avaliação da realidade. Em 2013 o eleitor médio passou a dar mais importância aos critérios morais que aos critérios econômicos para avaliar a realidade e, naturalmente, mudando os critérios, mudam os resultados.
Argumentos
Este gráfico, extraído da pesquisa CNT/MDA permite explicar bem o argumento. A mudança brusca de junho para julho de 2013 é a pista mais importante. As jornadas de julho calharam de acontecer um mês depois da pesquisa anterior, em uma época em que não ocorreu nenhuma grande mudança na vida econômica do país. Comparando a percepção econômica das duas, as respostas são muito parecidas. A única grande mudança foram as jornadas e, felizmente, a pesquisa pergunta sobre a percepção delas. A maioria acreditava que a reivindicação mais importante era o fim da corrupção (40%) e que o motivo delas era a insatisfação com a corrupção (55%). Não importa que tenha começado com uma pauta de transporte coletivo. O que se entendeu foi a pauta moralista da corrupção.
Alias, a maioria tinha uma avaliação mais positiva da reação de Dilma diante das manifestações que do congresso e 67,9% gostou da proposta que ela fez de um plebiscito sobre a reforma política, o que nos coloca diante da situação curiosa do eleitor que odeia os deputados que elege reiteradamente, mas divago…
Singer aponta que a classe média se afastou de Lula com o Mensalão porque um dos motivos do seu apoio ao PT era ver o partido como um partido anticorrupção. Ao mesmo tempo, as políticas sociais do primeiro governo Lula conseguiram conquistar o apoio de uma população mais pobre, que percebeu mudanças econômicas na sua vida. Essa mudança da base de apoio explicaria a reeleição de Lula e ele sobreviver às denúncias. Seu apoio não diminuiu, mas mudou de composição.
Ao longo dos anos, a insatisfação com a corrupção adormeceu, podemos supor que devido ao sucesso econômico das administrações petistas, mas explodiu em 2013. Podemos, inclusive, supor que pela mudança de perfil da população, que tendo escapado da pobreza, passou a dar valor a outras coisas.
Mas vamos à mudança mais brusca, entre setembro de 2014 e março de 2015. Entre estas duas datas, houve a eleição em outubro em que Dilma foi reeleita com 51,6% dos votos, então podemos supor que essa mudança brusca de opinião ocorreu entre 26 de outubro e 16 de março, data da pesquisa. Na verdade, outras pesquisas, que não são estatisticamente comparáveis, concordam com os dados da CNT/MDA quanto aos dados gerais e apontam que a avaliação de Dilma caiu meteoricamente assim que assumiu o segundo mandato.
Muita gente da esquerda defende a hipótese do “estelionato eleitoral”, de que essa queda de popularidade se deveu ao fato de Dilma adotar políticas como restrição de pensões, diminuição do abono salarial e outras políticas de austeridade fiscal, o que alienou sua base eleitoral sem conquistar os setores que exigiam essas medidas (o mercado e a mídia). Não discordo que essas medias tenham um peso, mas não acredito que sejam o principal fator.
50,6% das pessoas achavam que a corrupção era o maior desafio do governo na pesquisa de março de 2015 da CNT/MDA, e apenas 29,3% que era a economia, apesar de a maioria achar que a economia ia mal e ia piorar. Isso porque para 63,9% dos pesquisados a corrupção era causa dos problemas econômicos e a melhor solução para a crise econômica era promover a reforma política para 43,8%. Podemos deduzir que as pessoas sabiam que o país estava em uma crise, que o ajuste seria feito nos mais pobres, mas identificavam a corrupção como o causa central e a reforma política como saída.
Nessa época a Lava-Jato fazia operações espetaculares regularmente, com uma cobertura midiática que colocava toda a culpa no PT. Na página 86 da pesquisa Datafolha de fevereiro de 2015 é possível ver como a corrupção sai do 8º lugar como principal problema do Brasil no início do primeiro mandato de Dilma para 2º lugar no início do segundo. É interessante perceber que durante o “Mensalão” a corrupção nunca conseguiu essa importância, porque o maior problema era o desemprego. A medida que o desemprego vai perdendo importância, a saúde se impõe como maior problema ao longo do segundo mandato de Lula e do primeiro de Dilma. Todos fatores ligados diretamente à vida material das pessoas. Porém, com a Lava-Jato ocorre algo diferente, cuja gênese está em julho de 2013: a corrupção passa a ser vista como um problema cada vez mais grave.
Conclusão
A minha hipótese de trabalho é que a experiência da classe média ir às ruas em 2013 provocou uma mudança profunda na sociedade, que passou a dar mais valor para a avaliação moral, ou moralista, se preferir, e menos para a avaliação econômica. É importante lembrar que o moralismo é um elemento importante para a construção do fascismo, e que discriminações como o racismo, machismo e LGBTQIAfobia também se baseiam em discursos morais. Nesse novo cenário, a esquerda manteve um discurso econômico, enquanto o bolsonarismo fez campanhas essencialmente morais. Enquanto a esquerda debate as vantagens que o eleitor receberá, a direita debate porque o seu eleitor é melhor. E, como podemos ver pelos resultados eleitorais, a abordagem moralista continua sendo eficaz.
@blog Eu não acho que 2013 foi uma revolta espontânea, nem diria que foi uma revolta e sim uma ante-sala para os grupos violentos que tomaram as ruas da 3a manifestação em SP em diante. Eu não sei quem pagou os ônibus aqui para o distrito que levaram as crianças das escolas para o centro da cidade para "protestar", nem que pagou os grupos violentos ou à Veja para criar o "líder" carioca que era a "voz das ruas" e para criar a musa de olhos azuis dos protestos. +
@blog A "organização do caos" apos a 3a manifestação foi muito bem feita. Concordo que foi um balão de ensaio para os movimentos nas ruas do golpe de 2016. O terremoto que mudou as placas tectônicas foi a facilidade com que a direita se infiltrou e roubou para si o que começou como um protesto contra o preço da passagem em Porto Alegre em abril e que continuaria nas capitais
Pessoalmente tendo a acreditar que foi espontânea e capturada pelas demandas e uma classe-média moralista, udenista, etc. Mas acho que nesse ponto vamos concordar em discordar.
Mas quanto à hipótese do texto, de que após 2013 passou a haver uma avaliação mais moralista que econômica da vida, o que ajudou a Lava-Jato a ter o sucesso que teve? Tem alguns pitacos para contribuir?
@blog No ato do MPL em Porto Alegre já havia infiltração. O secretário dos transporte do prefeito Fortunati levou um caco de tijolo na cabeça quando falava com os manifestantes. Eu achei aquilo super estranho por dois motivos, 1) Estive em POA em dezembro de 2012 e o clima com relação à Copa era favorável pois atrairia turismo, vendas, etc 2) Não era, digamos assim, tradição praticar violência, cobrei um colega da UFRGS que é "comunista histórico" ele disse que haviam infiltrados +
@blog No primeiro semestre de 2013 eu dei aula para uma turma de humanas onde haviam vários manifestantes. Conversando com alguns deles eu estranhei o preparo deles para um "combate" já antes dos atos de junho. E um combate violento usando os malditos rojões, máscaras contra gás improvisadas, coletes para atenuar munição de borracha, etc. Achei fora do comum nos então 35 anos de vida acadêmica. Quando a coisa começou a organização e fretagem de ônibus para SP se materializou num passe de mágica+
@blog de forma muito semelhante ao que vimos nos ônibus para Brasília em 2022.
Eu não acredito em espontaneidade, no "o gigante acordou"…
O tanto de coisa importada: métodos, táticas, dispositivos, etc me parece muito mais algo coordenado do que qualquer outra coisa. Aí depois do 3o ato de SP virou caos, barbárie, instituto royal, etc, "não é por 20 centavos é contra tudo que taí", etc
Não concebo que as pessoas não percebessem que o que estava em risco não era a Dilma mas a democracia
@blog será que não tem também um efeito de manada aí?
naquela época a TV ainda era uma fonte importante de notícias, e só se falava na lavajato e escândalos de corrupção
meio que todo mundo achava que a corrupção era um problema porque era o que mais se via falar na TV
É bastante provável. Não tenho muita clareza do que foi a causa e, provavelmente, se formos fazer entrevistas, vamos encontrar um motivo um pouco diferente para cada um. Lembro, por exemplo, de como a mídia tentou direcionar todo mundo para ser contra a PEC 37.
Mas minha intuição é que, independente da causa, houve uma mudança duradoura no modo como a população avaliava o país e a vida política.