Frederich Engels criou o termo “assassinato social” para descrever as mortes causadas por condições econômicas e sociais que poderiam ser facilmente evitadas, mas não são. Gosto mais da expressão do que de “necropolítica”, porque deixa claro que há um ator, um responsável. Assassinatos possuem culpados. E, com certeza, esse post existe por causa do assassinato do CEO de plano de saúde nos EUA.
“Quando um indivíduo ocasiona danos físicos a outro, resultando em morte, chamamos o ato de homicídio culposo; quando o agressor sabe de antemão que o ferimento será fatal, chamamos de assassinato. Mas quando a sociedade coloca centenas de proletários em tal posição de modo que eles inevitavelmente se deparem com uma morte muito precoce e não natural, uma morte que é tão violenta quanto aquela ocasionada por uma espada ou bala; quando priva milhares do essencial para a vida, coloca-os em condições em que não podem viver — obriga-os, através do forte poder da lei, a permanecer em tais condições até que a morte vença, feito consequência inevitável — ou seja, quando ela sabe que esses milhares de vítimas vão perecer e, ainda assim, permite que permaneçam nessas condições, então sua intenção é a de assassinar, assim como quando um indivíduo sozinho comete assassinato; mas torna-se um homicídio disfarçado, malicioso, um homicídio contra o qual ninguém se pode defender, que não parece o que é, porque ninguém vê o assassino, porque a morte da vítima parece natural, pois o crime é mais por omissão do que por cometimento. Mas não deixa de ser assassinato”. — Friedrich Engels, “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”
Uma das críticas mais comuns às revoluções socialistas é o moralismo pacifista. “Como os bolcheviques puderam assassinar a família dos Czares. Mulheres e crianças!”. Esse tipo de crítica comove apenas pela distância, como podemos ver pela falta de empatia pelo CEO. Assim como o plano de saúde é responsável por inúmeras mortes ao negar tratamentos, a família do Czar era responsável por inúmeras mortes em uma guerra que nem fazia sentido para o povo russo. Mas esse moralismo não sobrevive a dois minutos de observação da realidade do assassinato social que ocorre todos os dias.
Porém, se o povo consegue identificar claramente que essas pessoas são assassinas, como elas mesmas conseguem continuar executando suas tarefas em uma máquina assassina de condenar pessoas à morte? Como é possível que uma série de executivos, analistas e consultores continuem executando tarefas cuja consequência é a morte?
Esse problema chocou o mundo quando os campos de extermínio foram descobertos na Segunda Guerra. Algumas das melhores explicações são as de Adorno, que falam sobre a existência de uma “razão instrumental” que é capaz de elaborar complexos mecanismos de terror, mas incapaz de refletir sobre as consequências éticas das suas ações, e Arendt, que falam sobre um mal banal, que é executado por pessoas que não pensam sobre o que fazem.
O choque europeu com o nazismo espantou muito Aimé Césaire. Nascido em uma colônia europeia, foi cirúrgico ao falar que o nazismo fez foi apenas aplicar na metrópole, o que as metrópoles praticavam nas colônias. A indignação ocidental com a violência contra os seus tem ares de hipocrisia, porque as cruzadas ao genocídio palestino em curso, o que os seus fazem é potencializar o mal com toda a razão instrumental disponível e o aplicar do modo mais banal possível.
O que espanta no texto de Engels, muito anterior a toda essa discussão, é como ele é capaz de perceber que o capitalismo não usa sua razão apenas para matar por ação, mas também pela omissão. Que o capitalismo usa de sua razão instrumental para criar, com a maior banalidade, condições que resultam na miséria e morte. Reformas trabalhistas, corte de aposentadorias, falta de manutenção em barragens de mineração, privatização da saúde, grilagem de terras, especulação imobiliária, evasão fiscal, desemprego… São todas condições que fabricam a morte dos trabalhadores, mas de um modo mais indireto que os policiais atirando em crianças de quatro anos da periferia ou atirando de pontes. A lógica capitalista, de aumentar os lucros e reduzir os custos, é a própria razão instrumental, que vai ceifando vidas em nome de pagar cada vez menos e cobrar cada vez mais, aplicada sem a menor reflexão ética sobre as suas consequências.
A falta de consciência, a banalidade do mal, não é desculpa. Como diz Samir Machado de Machado, o único bom nazista é o nazista morto. Mas seguir essa lógica cristalina nos obriga a defender que o único CEO bom é o CEO morto. O único colonizador bom é o colonizador morto. O único grileiro bom é o grileiro morto. É essa lógica cristalina que explica o assassinato do Czar e de todos que poderiam herdar o título. Essa é a lógica dos comunistas que escandaliza quem fecha os olhos ao assassinato social de milhões de pessoas para se indignar com a revolta dos oprimidos.