Existe uma grande discussão em torno da contribuição que a militância online, nas suas mais variadas formas, pode trazer para a esquerda, e este texto não deixa de ser uma crítica, mas se quer uma crítica fraterna e respeitosa, feita por quem admira a maior parte dos produtores de conteúdo de esquerda.
A produção de conteúdo para o YouTube ou Twitch gerou uma oportunidade curiosa, e até mesmo contraditória, em que é possível profissionalizar a militância comunista a partir de pagamentos realizados ou intermediados por grandes corporações. Algumas pessoas se aproveitaram dessa situação para criar canais de grande audiência, conseguindo fazer agitação e propaganda em uma escala impensável alguns anos atrás. Ao mesmo tempo, essas pessoas se submetem ao mesmo regime de trabalho superexplorado e precarizado imposto por essas plataformas através dos seus algorítimos.
A formulação “se Lênin fosse vivo, provavelmente, seria um tiktoker” é um ponto de partida interessante para analisar a relação da esquerda revolucionária com as mídias sociais. Se, sim, por um lado, o leninismo tem uma grande ênfase em lidar com o povo real e ir onde quer que ele esteja, por outro lado, valoriza muito a autonomia e resiliência do movimento diante da repressão. Um produtor de conteúdo é uma mera peça numa grande maquinaria de produção e reprodução de subjetividade, sendo preciso participar dessa maquinaria para ter um contato inicial com o povo. Ao mesmo tempo, participar é se reduzir a uma posição com muito pouco poder, e a maior preocupação do leninismo é como os trabalhadores podem conquistar o poder.
O que temos aqui é uma contradição que, como a dialética nos ensina, não pode ser resolvida dentro dos termos em que se coloca. É preciso ampliar o escopo para produzir sínteses. Para conquistar o poder as organizações leninistas precisam acumular forças sociais de vários modos, participando em vários segmentos da sociedade, inclusive na comunicação, nos termos em que a comunicação ocorre na sociedade. Mas qualquer força revolucionária deve esperar uma oposição ferrenha por parte do sistema contra o qual ela se organiza.
Lênin defendia que o partido precisa ter o próprio jornal, ou seja, que as forças revolucionárias precisam controlar o meio de difusão de suas mensagens já que seu caráter revolucionário fará com que perca acesso aos jornais burgueses assim que acumular força o bastante para incomodar os donos do poder. “Jornal” aqui não se refere necessariamente ao jornal físico, mas o meio de difusão de ideias. Continuando a analogia, ter o próprio jornal não é equivalente a ter o próprio canal no YouTube ou Servidor no Discord, mas a ter o próprio YouTube ou Discord. Nossa experiência ensina que a ameaça da repressão não são fantasias conspiratórias. As plataformas não são politicamente neutras, favorecem conteúdos de extrema-direita, derrubam desproporcionalmente mais perfis de esquerda que de direita. Sim, as pessoas estão nelas, então é preciso participar delas para fazer agitação, mas é um risco depender delas para nossa comunicação e é insensato depender delas para viabilizar financeiramente a atividade militante.
Grande parte da esquerda revolucionária aplica a estratégia do “funil de conteúdo”, elaborada por Luide Matos, segundo a qual é necessário ter mensagens diferentes em plataformas diferentes, e guiar as pessoas da plataforma mais superficial, no topo do funil, para a mais profunda, no fundo, a medida que ela se aproxima ideologicamente. Esta estratégia é muito adequada para superar a contradição posta, por conceber a agitação e propaganda como um processo, mas para que isso ocorra é preciso uma correção de curso importante: o fundo, talvez até o meio do funil, devem ser fora das mídias sociais corporativas.
O funil de conteúdo é uma boa estratégia, e tem dado bons resultados para muitos comunicadores, mas observar as relações de poder nas mídias sociais nos obriga a este adendo. É impossível construir um poder comunicacional real estando à mercê dos termos de uso e vontades questionáveis das plataformas. Isso quer dizer que a “venda” no fundo do funil precisa ocorrer em espaços controlados pelas forças revolucionárias, e que o funil deve direcionar as pessoas para fora das mídias capitalistas.
Fazer essa correção de curso pode nos trazer duas grandes conquistas. Primeiro, menos exploração e adoecimento de nossos comunicadores. Garantir que a sustentação financeira ocorra através das nossas próprias plataformas nos protege, ao menos em parte, das desmonetizações, shadowbans e mudanças arbitrárias de regras. Segundo, ter os membros mais engajados da comunidade em espaços mais saudáveis, controlados por nós, que não estão ativamente tentando distraí-los e desviar sua atenção para outros assuntos facilita o acesso, mobilização e organização políticas.
Mas é preciso reparar que um site de notícias tradicional, não se é um fundo de funil adequado. Voltando a Luide Matos, “pessoas gostam de pessoas”, não do notícias em um site. O fundo do funil precisa de um forte componente social, similar às plataformas sociais que usamos. É necessário, literalmente, começar a pensar em termos de que “ter o próprio jornal”, hoje em dia, significa ter a própria plataforma. Não necessariamente como ponto de partida, mas como objetivo. O ICL, por exemplo, começou sua plataforma de cursos no HotMart, mas a migrou para o WordPress. Fazer essa mudança nos obriga a debater suas condições materiais. Assim como as oficinas tipográficas que imprimiam e reproduziam o Iskra precisavam ser debatidas pelos revolucionários russos, os softwares e hospedagens de sites precisam ser debatidos pelos revolucionários atuais.
Existe acúmulo. A Rede das Produtoras Colaborativas, a Rede Sacix, Coletivo Digital, pontos e pontões de cultura digital, vem estudando e debatendo soluções, como a adoção de plataformas federadas. Exige trabalho, mas eleva nosso grau de organização, sustentabilidade, independência e resiliência.
Com o perdão ao quixotismo, combater as corporações digitais passa por libertar as pessoas de seus jardins murados. Fazer com que elas sangrem usuários até a anemia mediante uma guerra popular prolongada.
Deixe um comentário