Lênin não seria um tiktoker: a relação da esquerda revolucionária com as mídias sociais

Desenho estilizado de Lênin com a mão estendida, como que apontando o caminho. Ao fundo o número 1917. Sobre o número, foi sobreposto o logotipo do TioTok.

Existe uma grande discussão em torno da contribuição que a militância online, nas suas mais variadas formas, pode trazer para a esquerda, e este texto não deixa de ser uma crítica, mas se quer uma crítica fraterna e respeitosa, feita por quem admira a maior parte dos produtores de conteúdo de esquerda.

A produção de conteúdo para o YouTube ou Twitch gerou uma oportunidade curiosa, e até mesmo contraditória, em que é possível profissionalizar a militância comunista a partir de pagamentos realizados ou intermediados por grandes corporações. Algumas pessoas se aproveitaram dessa situação para criar canais de grande audiência, conseguindo fazer agitação e propaganda em uma escala impensável alguns anos atrás. Ao mesmo tempo, essas pessoas se submetem ao mesmo regime de trabalho superexplorado e precarizado imposto por essas plataformas através dos seus algorítimos.

A formulação “se Lênin fosse vivo, provavelmente, seria um tiktoker” é um ponto de partida interessante para analisar a relação da esquerda revolucionária com as mídias sociais. Se, sim, por um lado, o leninismo tem uma grande ênfase em lidar com o povo real e ir onde quer que ele esteja, por outro lado, valoriza muito a autonomia e resiliência do movimento diante da repressão. Um produtor de conteúdo é uma mera peça numa grande maquinaria de produção e reprodução de subjetividade, sendo preciso participar dessa maquinaria para ter um contato inicial com o povo. Ao mesmo tempo, participar é se reduzir a uma posição com muito pouco poder, e a maior preocupação do leninismo é como os trabalhadores podem conquistar o poder.

O que temos aqui é uma contradição que, como a dialética nos ensina, não pode ser resolvida dentro dos termos em que se coloca. É preciso ampliar o escopo para produzir sínteses. Para conquistar o poder as organizações leninistas precisam acumular forças sociais de vários modos, participando em vários segmentos da sociedade, inclusive na comunicação, nos termos em que a comunicação ocorre na sociedade. Mas qualquer força revolucionária deve esperar uma oposição ferrenha por parte do sistema contra o qual ela se organiza.

Lênin defendia que o partido precisa ter o próprio jornal, ou seja, que as forças revolucionárias precisam controlar o meio de difusão de suas mensagens já que seu caráter revolucionário fará com que perca acesso aos jornais burgueses assim que acumular força o bastante para incomodar os donos do poder. “Jornal” aqui não se refere necessariamente ao jornal físico, mas o meio de difusão de ideias. Continuando a analogia, ter o próprio jornal não é equivalente a ter o próprio canal no YouTube ou Servidor no Discord, mas a ter o próprio YouTube ou Discord. Nossa experiência ensina que a ameaça da repressão não são fantasias conspiratórias. As plataformas não são politicamente neutras, favorecem conteúdos de extrema-direita, derrubam desproporcionalmente mais perfis de esquerda que de direita. Sim, as pessoas estão nelas, então é preciso participar delas para fazer agitação, mas é um risco depender delas para nossa comunicação e é insensato depender delas para viabilizar financeiramente a atividade militante.

Grande parte da esquerda revolucionária aplica a estratégia do “funil de conteúdo”, elaborada por Luide Matos, segundo a qual é necessário ter mensagens diferentes em plataformas diferentes, e guiar as pessoas da plataforma mais superficial, no topo do funil, para a mais profunda, no fundo, a medida que ela se aproxima ideologicamente. Esta estratégia é muito adequada para superar a contradição posta, por conceber a agitação e propaganda como um processo, mas para que isso ocorra é preciso uma correção de curso importante: o fundo, talvez até o meio do funil, devem ser fora das mídias sociais corporativas.

O funil de conteúdo é uma boa estratégia, e tem dado bons resultados para muitos comunicadores, mas observar as relações de poder nas mídias sociais nos obriga a este adendo. É impossível construir um poder comunicacional real estando à mercê dos termos de uso e vontades questionáveis das plataformas. Isso quer dizer que a “venda” no fundo do funil precisa ocorrer em espaços controlados pelas forças revolucionárias, e que o funil deve direcionar as pessoas para fora das mídias capitalistas.

Fazer essa correção de curso pode nos trazer duas grandes conquistas. Primeiro, menos exploração e adoecimento de nossos comunicadores. Garantir que a sustentação financeira ocorra através das nossas próprias plataformas nos protege, ao menos em parte, das desmonetizações, shadowbans e mudanças arbitrárias de regras. Segundo, ter os membros mais engajados da comunidade em espaços mais saudáveis, controlados por nós, que não estão ativamente tentando distraí-los e desviar sua atenção para outros assuntos facilita o acesso, mobilização e organização políticas.

Mas é preciso reparar que um site de notícias tradicional, não se é um fundo de funil adequado. Voltando a Luide Matos, “pessoas gostam de pessoas”, não do notícias em um site. O fundo do funil precisa de um forte componente social, similar às plataformas sociais que usamos. É necessário, literalmente, começar a pensar em termos de que “ter o próprio jornal”, hoje em dia, significa ter a própria plataforma. Não necessariamente como ponto de partida, mas como objetivo. O ICL, por exemplo, começou sua plataforma de cursos no HotMart, mas a migrou para o WordPress. Fazer essa mudança nos obriga a debater suas condições materiais. Assim como as oficinas tipográficas que imprimiam e reproduziam o Iskra precisavam ser debatidas pelos revolucionários russos, os softwares e hospedagens de sites precisam ser debatidos pelos revolucionários atuais.

Existe acúmulo. A Rede das Produtoras Colaborativas, a Rede Sacix, Coletivo Digital, pontos e pontões de cultura digital, vem estudando e debatendo soluções, como a adoção de plataformas federadas. Exige trabalho, mas eleva nosso grau de organização, sustentabilidade, independência e resiliência.

Com o perdão ao quixotismo, combater as corporações digitais passa por libertar as pessoas de seus jardins murados. Fazer com que elas sangrem usuários até a anemia mediante uma guerra popular prolongada.

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Comentários

11 respostas para “Lênin não seria um tiktoker: a relação da esquerda revolucionária com as mídias sociais”

  1. Avatar de Bolchebits

    @blog esse formato também acredito ser o melhor no momento. Se juntar a galera de um hackspace pra ser o fim do funil, acho que da boa. Assisti o vídeo do canal do Teclas falando sobre hackspace e pra mim deveria ter mais deles por ai.

    1. Avatar de Cochise César

      Suspeito que boa parte da falta de acúmulo das organizações revolucionárias sobre tecnologia é por conta da falta de pessoas. Precisamos de muitos espaços como hackspaces para gerar acúmulo. Com o cuidado para que o rabo não abane o cachorro. O objetivo é ter a tecnologia a serviço dos trabalhadores, e não como um fim em si.

  2. Avatar de Gabriel

    Concordo.
    Acho que o ideal é ter uma rede social para discussões como o Lemmy, auto hosteado, e outra para posts mais longos e que são facilmente referenciáveis pelo google, etc. como o seu site.

    1. Avatar de Cochise César

      Sim. As pessoas precisam de um espaço em que possam interagir, formar laços, se tornar comunidade, tanto quanto o movimento precisa de repositórios de conhecimento. Além, é claro, de presença nas plataformas corporativas, que é lá que as pessoas estão.

  3. Avatar de Uirá Porã

    @blog

    Ótimo texto para uma importante e oportuna discussão, pois soma a animadora existência dos "web comunistas", com a reflexão sobre os desdobramentos técnicos que essa forma de luta poderia ter à partir do seu sucesso.

    Adicionaria um prefácio, pra primeiro parabenizar aqueles e aquelas que tem feito esse importantíssimo trabalho de ocupar as "fábricas de likes" e, por meio delas, estar conectando e sensibilizando pessoas o suficiente para termos esse debate sobre o fundo do funil.

    1. Avatar de Cochise César

      É, relendo o parágrafo inicial, talvez eu deva reescrever para deixar mais clara minha admiração pelo trabalho deles.

  4. Avatar de Cochise César

    Esse é um bom começo =]
    Algo que me preocupa muito em relação ao influenciadores de esquerda é a dependência financeira em relação a membros de canal, superlikes e similares. Ou, no vocabulário da matéria, ter o fundo do funil nas plataformas.
    Minha impressão é que essas comunidades precisam construir seus meios de financiamento fora delas, o mais rápido possível.

  5. Avatar de Thiago Skárnio

    @blog @caio @cochise @rede @tiagojferreira @uira @wladimir Esse debate da monetização é longo e complexo. São várias possibilidades. O que precisamos estabelecer no campo progressista, é na verdade uma ética e princípios do que se deve – e como se deve – monetizar para orientar essas experiências. De modo que sirvam tanto como uma autorregulação nossa, quanto uma contribuição prática ao debate da regulação das plataformas proprietárias.

    1. Avatar de Cochise César

      Acho que aqui você acertou em cheio. A monetização define o conteúdo, então as opções de monetização acabam não são uma discussão auxiliar, mas o núcleo ético.
      Sem debater isso, nor tornamos escravos dos algorítimos, sendo forçados a girar na rodinha de hamster dos reacts e comentários.

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