O vírus da irrelevância

A democracia está quebrada, e nem entendemos o problema direito. Isto é um esforço para tentar montar o quebra cabeças. Esta é uma peça.

O viral há muito já deixou de ser um fenômenos esporádico para se tornar um modo de funcionamento da nossa cultura. A cada semana algo novo viraliza, se torna o assunto do momento por alguns dias, para depois cair no esquecimento. Esse comportamento epidêmico da comunicação digital, em que a notícia se espalha criando imunidade contra si mesma já é como nós esperamos que os discursos sejam feitos hoje. E exatamente porque esperamos, criamos modelos de negócio baseados neles. No início, a comunicação viral era um fenômeno raro e exótico e sua transformação de exceção em regra está ligada ao modo como a internet se paga.

Quase toda a internet é financiada por anúncios, ou seja, os veículos de comunicação oferecem conteúdo de graça para atrair olhos sobre si e cobram para que anunciantes tenham acesso a estes olhos. Isso quer dizer que os veículos de comunicação precisam de público. E precisam muito. Por isto investem muito em novas técnicas e estratégias para atrair olhos que possam vender aos anunciantes. Uma das técnicas mais simples e óbvias é falar sobre os assuntos do momento. O jornalismo, há décadas, separa matérias em quentes, as que precisam ser publicadas imediatamente, antes que se tornem obsoletas, e frias, as que podem ser publicadas a qualquer tempo, e ficam guardadas para os dias com poucos acontecimentos, em que há poucas notícias quentes ocupando as páginas dos jornais.

Mas uma das mudanças estruturais da internet é a prateleira infinita1. O conceito de que não é mais preciso limitar a quantidade de produtos oferecida, porque não existem mais limites físicos. Em teoria, as matérias frias podem ser publicadas a qualquer momento porque não há limite do número e podem ser acessadas através dos sites de pesquisa. O único limite é o de pessoal, capaz de geral tal conteúdo, e aí que as leis econômicas atacam de modo inesperado.

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Se a informação é gratuita, a mercadoria vendida são seus olhos.

Mas matérias quentes tem mais audiência, toda a indústria de comunicação sabe disso, e a prateleira infinita, ao invés de favorecer as matérias frias, que atraem poucos olhos, reduziu o limite da trivialidade2, fazendo com que passássemos a ter mais matérias quentes, sobre tópicos cada vez menos relevantes. O limiar do publicável se reduziu sistematicamente na última década, na medida em que os meios de comunicação otimizaram seu conteúdo em sua batalha por mais olhos. Essa otimização brutal se fez necessária principalmente porque a internet é um campo miserável onde os meios de comunicação quase todos lutam constantemente contra a falência.

A Lei da Trivialidade de Parkinson ajuda a entender essa ampliação do que é publicável. A lei diz que o engajamento em uma discussão é inversamente proporcional à sua importância, porque matérias importantes são complexas, e as pessoas são incapazes de participar de uma discussão que não compreendem. Assim, as matérias que podem ser objeto de discussão infinita, as que valem a pena publicar quanto o critério de valer a pena é o número de olhos atraídos, são as mais triviais, as em que qualquer um pode dar uma opinião, as que perguntam de que cor é o vestido.

Ninguém sabe como serão, os filhos deste casamento. Indústria da informação, indústria do entretenimento.

Assim, as condições econômicas da comunicação na internet disseminaram a viralização como regra, o que é uma dinâmica, mas também seu conteúdo. Os meios de comunicação, eles próprios a fabricam ao amplificar os menores movimentos espontâneos que encontram nas redes sociais, os legitimando e atraindo mais pessoas para uma interminável, porém trivial discussão. As pessoas e instituições, recompensadas por participar destas discussões irrelevantes, continuam as realizando, comprovando as mais rudimentares premissas da psicologia comportamental.

Se a comunicação fosse apenas um negócio para as empresas que se arriscam a operar na área, este artigo não existiria. Mas como a comunicação cria realidades, elege governantes, promove valores, entre outros, devemos nos perguntar como combater a epidemia de irrelevância da comunicação digital.

Notas

  1. Outro fator importante é a hegemonia dos feeds nas redes sociais como fonte. A pesquisa passou para segundo plano como fonte de público. E o feed precisa ser sempre alimentado.
  2. O jornalismo tem um debate antigo sobre o que é notícia, o que pode e deve ser publicado. Para aprofundar, siga as referências.

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