Mês: junho 2025

  • A falsa contradição entre reforma e revolução

    Curiosamente, o debate entre reforma e revolução é um debate importante no Brasil, onde alguns grupos comunistas rejeitam a luta eleitoral argumentando sobre a sua incapacidade de produzir transformações profundas do sistema econômico, enquanto outros grupos apontam a impossibilidade de acumulação de forças para uma revolução clássica em uma sociedade altamente ocidentalizada. Como todos os problemas que precisam de uma solução dialética, ambos os lados estão certos, mas também errados.

    Antes de continuar é importante definir alguns termos para reduzir os mal entendidos. Socialistas e comunistas entendem ser preciso superar o capitalismo, e a diferença entre abordagens revolucionária ou reformista diz respeito somente aos meios de alcançar o socialismo. Este texto não é sobre social-democratas, também chamados de reformistas, que entendem que não é preciso superar o capitalismo, mas somente o controlar e regular, via políticas sociais.

    O argumento a favor da luta eleitoral e da participação no estado tem várias origens e antecedentes, mas hoje em dia uma toma normalmente a forma do da necessidade de combater a hegemonia ideológica do capitalismo, no sentido gramsciano, para criar condições subjetivas para a revolução. Para Gramsci, as sociedades ocidentais estariam muito presas à ideologia capitalista para aceitar uma revolução como legítima, e essa posição é normalmente considerada verdadeira, inclusive por quem defende a luta revolucionária. O debate gira em torno de quais seriam as melhores estratégias de realizar a luta ideológica contra hegemônica: revolucionários defendendo organizações de base e ação política, mas não eleitoral, e reformistas defendem o uso das eleições e a administração do estado.

    Porém, assim como Gramsci faz suas reflexões à luz da derrota dos comunistas italianos, temos elementos o bastante para refletir à luz das experiências e limites de reformas em vários países do mundo. Vamos usar os casos de Bolívia, Brasil, Venezuela, e Nicarágua para refletir sobre o tema. Todos esses países foram membros da chamada “onda rosa” da América Latina, em que governos de esquerda conseguiram acesso aos governos centrais de vários países, implantando políticas sociais e mudando profundamente os países. E todos eles enfrentaram grandes crises políticas que tentaram pôr fim a estes governos, com sucesso, nos casos do Brasil e Bolívia.

    Ou seja, os revolucionários estão mais que certos quando apontam que existe um limite claro e violento para a estratégia reformista. As forças reacionárias de oposição a estes governos de esquerda promoveram o golpe policial-miliar na Bolívia, o golpe parlamentar no Brasil, a agitação e tentativas de sabotagem do governo na Venezuela e a tentava de revolução colorida na Nicarágua.

    Este texto, propositalmente, não discute se as experiências venezuelana e nicaraguense são, de fato socialistas, ou se suas lideranças agiram bem ou mal. O objetivo é discutir somente as estratégias de resistência às reações conservadoras.

    Na Bolívia e no Brasil, após os golpes, os governos reacionários foram derrotados eleitoralmente, com a vitória de Lula e Acre, em um desenvolvimento alinhado com os princípios da democracia liberal e que, até certo ponto, restaurou a situação anterior de um governo reformista à espera de uma nova investida reacionária. Na Venezuela e Nicarágua, por outro lado, tivemos governos que resistiram às intentonas reacionárias e consolidaram seu poder, sendo por isso considerados ditaduras pela comunidade internacional e sofrendo vários tipos de sanções.

    Essa consolidação do poder foi usada pelos governos para implantar reformas mais profundas, como a diversificação da economia venezuelana, tentada por décadas no seu período “democrático”, sempre sem sucesso, ou o uso de fundos públicos e estatais para nacionalizar e estatizar setores estratégicos da economia na Nicarágua, o que é denunciado como “corrupção”.

    A grande questão que se coloca é: o que diferencia Venezuela e Nicarágua e Brasil e Bolívia? Qual elemento estrutural explica o governo extremamente popular do MAS ser vítima de um golpe e o governo da Nicarágua, criticado até por partes significativas da esquerda internacional, se sustentar?

    “Poder político cresce do cano de uma arma” – Mao Zedong

    Nas crises, o movimento bolivariano se sustenta no exército, a FSLN na Polícia Nacional, criada durante o período sandinista, em contraponto ao exército. O Estado é o órgão que possui o monopólio da violência legítima e seus braços armados podem se mobilizar para derrubar governos, como ocorreu na Bolívia, com o golpe policial/militar ou no Brasil, com a Polícia Federal sabotando o governo através da Lava Jato e o exército impedindo a atuação política de Lula para impedir o golpe. Ou podem apoiar estado de golpes mobilizadas a partir da sociedade civil.

    O problema da social-democracia é ilusão de que vivemos em uma democracia, e não em uma ditadura da burguesia, que só tolera a democracia se for ela a ganhar. Isso abre um flanco de ataque impossível de fechar, porque diante de taxas de lucro decrescentes, a burguesia sempre vai apelar à violência.

    Isso quer dizer que socialistas e comunistas podem defender e implementar reformas como parte de uma estratégia revolucionária, desde que tenham consciência de que estão jogando no campo adversário, e desenvolvam políticas para garantir que o monopólio da força não seja usado contra o próprio governo. Não é possível esquecer que o estado burguês e a democracia burguesa são instrumentos de poder da burguesia, que ela vai acionar para garantir seus interesses.

    Neutralizar o caráter de classe dos aparatos de força do estado, e/ou construir aparatos de força autônomos dos trabalhadores é parte essencial de qualquer estratégia socialista que inclua a reforma entre suas táticas.

  • Lênin não seria um tiktoker: a relação da esquerda revolucionária com as mídias sociais

    Lênin não seria um tiktoker: a relação da esquerda revolucionária com as mídias sociais

    Existe uma grande discussão em torno da contribuição que a militância online, nas suas mais variadas formas, pode trazer para a esquerda, e este texto não deixa de ser uma crítica, mas se quer uma crítica fraterna e respeitosa, feita por quem admira a maior parte dos produtores de conteúdo de esquerda.

    A produção de conteúdo para o YouTube ou Twitch gerou uma oportunidade curiosa, e até mesmo contraditória, em que é possível profissionalizar a militância comunista a partir de pagamentos realizados ou intermediados por grandes corporações. Algumas pessoas se aproveitaram dessa situação para criar canais de grande audiência, conseguindo fazer agitação e propaganda em uma escala impensável alguns anos atrás. Ao mesmo tempo, essas pessoas se submetem ao mesmo regime de trabalho superexplorado e precarizado imposto por essas plataformas através dos seus algorítimos.

    A formulação “se Lênin fosse vivo, provavelmente, seria um tiktoker” é um ponto de partida interessante para analisar a relação da esquerda revolucionária com as mídias sociais. Se, sim, por um lado, o leninismo tem uma grande ênfase em lidar com o povo real e ir onde quer que ele esteja, por outro lado, valoriza muito a autonomia e resiliência do movimento diante da repressão. Um produtor de conteúdo é uma mera peça numa grande maquinaria de produção e reprodução de subjetividade, sendo preciso participar dessa maquinaria para ter um contato inicial com o povo. Ao mesmo tempo, participar é se reduzir a uma posição com muito pouco poder, e a maior preocupação do leninismo é como os trabalhadores podem conquistar o poder.

    O que temos aqui é uma contradição que, como a dialética nos ensina, não pode ser resolvida dentro dos termos em que se coloca. É preciso ampliar o escopo para produzir sínteses. Para conquistar o poder as organizações leninistas precisam acumular forças sociais de vários modos, participando em vários segmentos da sociedade, inclusive na comunicação, nos termos em que a comunicação ocorre na sociedade. Mas qualquer força revolucionária deve esperar uma oposição ferrenha por parte do sistema contra o qual ela se organiza.

    Lênin defendia que o partido precisa ter o próprio jornal, ou seja, que as forças revolucionárias precisam controlar o meio de difusão de suas mensagens já que seu caráter revolucionário fará com que perca acesso aos jornais burgueses assim que acumular força o bastante para incomodar os donos do poder. “Jornal” aqui não se refere necessariamente ao jornal físico, mas o meio de difusão de ideias. Continuando a analogia, ter o próprio jornal não é equivalente a ter o próprio canal no YouTube ou Servidor no Discord, mas a ter o próprio YouTube ou Discord. Nossa experiência ensina que a ameaça da repressão não são fantasias conspiratórias. As plataformas não são politicamente neutras, favorecem conteúdos de extrema-direita, derrubam desproporcionalmente mais perfis de esquerda que de direita. Sim, as pessoas estão nelas, então é preciso participar delas para fazer agitação, mas é um risco depender delas para nossa comunicação e é insensato depender delas para viabilizar financeiramente a atividade militante.

    Grande parte da esquerda revolucionária aplica a estratégia do “funil de conteúdo”, elaborada por Luide Matos, segundo a qual é necessário ter mensagens diferentes em plataformas diferentes, e guiar as pessoas da plataforma mais superficial, no topo do funil, para a mais profunda, no fundo, a medida que ela se aproxima ideologicamente. Esta estratégia é muito adequada para superar a contradição posta, por conceber a agitação e propaganda como um processo, mas para que isso ocorra é preciso uma correção de curso importante: o fundo, talvez até o meio do funil, devem ser fora das mídias sociais corporativas.

    O funil de conteúdo é uma boa estratégia, e tem dado bons resultados para muitos comunicadores, mas observar as relações de poder nas mídias sociais nos obriga a este adendo. É impossível construir um poder comunicacional real estando à mercê dos termos de uso e vontades questionáveis das plataformas. Isso quer dizer que a “venda” no fundo do funil precisa ocorrer em espaços controlados pelas forças revolucionárias, e que o funil deve direcionar as pessoas para fora das mídias capitalistas.

    Fazer essa correção de curso pode nos trazer duas grandes conquistas. Primeiro, menos exploração e adoecimento de nossos comunicadores. Garantir que a sustentação financeira ocorra através das nossas próprias plataformas nos protege, ao menos em parte, das desmonetizações, shadowbans e mudanças arbitrárias de regras. Segundo, ter os membros mais engajados da comunidade em espaços mais saudáveis, controlados por nós, que não estão ativamente tentando distraí-los e desviar sua atenção para outros assuntos facilita o acesso, mobilização e organização políticas.

    Mas é preciso reparar que um site de notícias tradicional, não se é um fundo de funil adequado. Voltando a Luide Matos, “pessoas gostam de pessoas”, não do notícias em um site. O fundo do funil precisa de um forte componente social, similar às plataformas sociais que usamos. É necessário, literalmente, começar a pensar em termos de que “ter o próprio jornal”, hoje em dia, significa ter a própria plataforma. Não necessariamente como ponto de partida, mas como objetivo. O ICL, por exemplo, começou sua plataforma de cursos no HotMart, mas a migrou para o WordPress. Fazer essa mudança nos obriga a debater suas condições materiais. Assim como as oficinas tipográficas que imprimiam e reproduziam o Iskra precisavam ser debatidas pelos revolucionários russos, os softwares e hospedagens de sites precisam ser debatidos pelos revolucionários atuais.

    Existe acúmulo. A Rede das Produtoras Colaborativas, a Rede Sacix, Coletivo Digital, pontos e pontões de cultura digital, vem estudando e debatendo soluções, como a adoção de plataformas federadas. Exige trabalho, mas eleva nosso grau de organização, sustentabilidade, independência e resiliência.

    Com o perdão ao quixotismo, combater as corporações digitais passa por libertar as pessoas de seus jardins murados. Fazer com que elas sangrem usuários até a anemia mediante uma guerra popular prolongada.

    Reações no Fediverso